Choquei e o Caso Jéssica: qual a origem do cancelamento

Choquei e o Caso Jéssica: qual a origem do cancelamento

O Brasil inteiro parou quando a jovem Jéssica Vitória Canedo tirou a própria vida. Jéssica tinha 22 anos, e sofreu um falso exposed de páginas de fofoca, na qual elas forjaram uma conversa falsa para acusá-la de ser amante de Whindersson Nunes. Tanto Jéssica quanto Whindersson desmentiram a notícia, mas a chuva de comentários odiosos não parou. 

Desesperada, a mãe de Jéssica gravou então um vídeo pedindo para as pessoas por favor pararem de mandar mensagens de ódio para sua filha, avisando que sua filha sofria de depressão e diversos problemas psicológicos. Não deu certo. 

Pior do que apenas ser ignorada, o dono da página de fofoca Choquei debochou dela dizendo que a época da redação do Enem já havia passado. Por fim, após Jéssica tirar a própria vida, a página Choquei solta uma nota “lamentando profundamente o ocorrido” e “se solidarizando com os familiares e todos os afetados pelo triste acontecimento”. 

Por mais triste e escandalosa que essa situação possa ser, nada disso é novo. Inclusive, eu publiquei seis meses atrás um texto relatando a morte da jovem lutadora Hana Kimura, também de 22 anos, que também se suicidou devido a um ódio nas redes iniciado por uma empresa. Ontem foi Hana, hoje foi Jéssica, e amanhã será uma nova pessoa. A roda do cancelamento continua passando por cima de vidas humanas enquanto os culpados posam de santos imaculados. 

Mas claro, caro leitor, isso tudo você também já sabia. Deixe-me então propor uma nova pergunta: o que causa o cancelamento? Indo além, com que cara um cancelador pode inventar uma mentira para destruir a reputação de uma pessoa desconhecida, persistir na mentira debochando de uma mãe enquanto ela implora pela vida de sua filha? E depois que o pior acontece, o que faz com que ele dobre a aposta na mentira, diga se lamenta, e siga a vida como se nada tivesse acontecido? 

O olhar das janelas

Imagine viver numa certa cidadezinha qualquer, com “casas entre bananeiras e mulheres entre as laranjeiras”. Lá, todas as famílias se conhecem, e há um senso de comunidade que une a todos. No entanto, isso também é uma maldição. “Devagar…as janelas olham”, e tudo o que você e sua família fizeram ao longo da sua vida será conhecido por elas e julgado. 

Essa “cidadezinha qualquer” é muito diferente da nossa realidade urbana, onde toda a paisagem se tornou um imenso mar de cinza e o senso de comunidade foi perdido. Afinal, convivemos todos os dias com pessoas que nunca vimos antes e que nunca mais veremos de novo. Ironicamente, isso faz de nós tão sozinhos e isolados uns dos outros que uma mulher poderia ser estuprada publicamente num metrô e ninguém se importaria de ajudar. Mas devagar… as janelas ainda olham. O senso de comunidade em ajudar aquela mulher em apuros foi perdido, mas os horrorizados espectadores do metrô da Philadélfia fizeram questão de pegar seus celulares e gravar toda a tragédia. Assim, os gritos de desespero daquela mulher não foram atendidos, mas se tornam então entretenimento para milhões de usuários de internet. Mesmo que não sejamos mais uma comunidade, a fofoca sobrevive num ininterrupto ciclo de notícias que nos fornece sempre um novo assunto para discutir e comentar, com as telas de nossos celulares se tornando as novas janelas que, devagar, observam e julgam.

Hipocrisia, o dogma da sociedade digital

Para se proteger nesse novo mundo digital, onde tudo e todos julgam, há um tabu que todos sabem, mas fingem não saber: tenha uma vida perfeita. Vemos uns aos outros em postagens de redes sociais comendo em lugares incríveis, viajando para lugares paradisíacos, e ostentando relacionamentos perfeitos. Diferente do passado, porém, estamos todos cientes de que essas vidas são uma mentira. Sabemos que apenas os melhores momentos são postados, quando não fabricados para fingir riqueza e, com isso, normalizamos que “a virtude é uma mentira”. 

Em outras palavras, as pessoas incríveis, éticas e morais não são mais vistas como uma inspiração de como podemos melhorar nossas vidas, mas sim como transgressores moralistas e hipócritas que “ousam” tentar nos dizer como deveríamos viver quando “claramente” só devem ter um passado que ainda não foi escavado. A eles, todo ódio é permitido, pois todos aqueles que tentam nos dizer que podemos sim ser algo a mais “precisam” ter suas reputações destruídas.

Exemplo disso melhor não há do que o caso de Jordana Vucetic, a tik-toker evangélica devota que atraiu a ira de todos quando revelou que tinha um namoro cristão e só faria sexo com seu namorado depois que eles se casassem. Jordana tinha sua conta no tik-tok desde os 13 anos, quando postava fotos de biquíni e em festas e recebendo diversas mensagens de pessoas sexualmente interessadas nela, mas converteu-se aos 16, tendo tido apenas um namorado anteriormente.

Eis que esse seu ex namorado vaza videos +18 que havia feito com ela quando ela ainda tinha entre 14 e 17 anos, e a internet regozijou-se em ódio. De repente, Jordana passou a ser atacada como se fosse a mais promíscua das mulheres e seu namorado a receber mensagens aconselhando-o para deixá-la, pois ele estaria sendo enganado enquanto ela estaria traindo-o com inúmeros homens. Assim, pessoas que declamam aos quatro ventos que uma mulher não é seu passado passaram a ver isso com os piores olhos e usar conteúdo vazados de Jordana, mesmo que ilegal, para destruir sua vida e reputação. 

Não importava para essas pessoas, que defendem a liberdade sexual feminina, estavam sendo hipócritas ao atacar uma mulher por sua vida sexual; muito menos que consumir o conteúdo vazado fosse um crime dos mais mal vistos. Importava apenas que Jordana precisava ser arrastada de volta para o poço da amoralidade, pois nossa sociedade digital é incapaz de conceber um mundo onde a hipocrisia não é a norma.

A tragédia nisso tudo é que, num mundo onde todos nascem imersos nas redes sociais, casos como o de Jordana são a regra: todos os nossos erros cometidos na infância e adolescência, quando ainda não temos maturidade para tomar decisões corretas, são registrados para todo sempre e podem ser usados contra nós fora de contexto. Os canceladores sabem disso, e assumem que a única diferença entre eles aqueles que cancelam é que eles ainda não foram pegos.

E é por isso tudo que o dono da Choquei debochou da vida de Jéssica. Para ele, ela era apenas um nome e uma foto. Mais uma ninguém que ele poderia utilizar e nunca mais ver de novo quando se tornasse “notícia velha”. Era uma notícia inventada? Sim. Mas, porque  ele se importaria se, quando fosse se corrigir, seu público já teria esquecido e ido para  próxima? Ele estaria sendo hipócrita? Canalha? Desumano? Sim. Mas, aos olhos dele, todo mundo é.

Logo, a tragédia de Jéssica e de Hana não são tragédias isoladas, mas sim um sintoma de uma sociedade esvaziada de todas as coisas que lhe davam significado. Uma sociedade que tenta se distrair fingindo ter vidas perfeitas, mas com um ódio ferrenho por qualquer um que tente trazê-los de volta à realidade. 

Em outras palavras, os canceladores não são monstros cruéis que sentem prazer em dilacerar a pessoa cancelada, mas sim cães raivosos que estão há dias sem comer e atacam sua vítima na esperança de que isso possa saciar, mesmo que por um instante, a sua fome de significado. Logo, o culpado pelas mortes de Jéssica, Hana, e de tantas outras vítimas como não são os cães, mas sim a pessoa que as jogou para eles. 

Lacrando Vidas

Em vídeo recente, o produtor de conteúdo Daniel Penin expôs a empresa de mídia Mynd8, que gerenciava não apenas a Choquei, mas também todas as principais páginas de fofoca do Brasil. Com isso, Penin mostrou como todas essas páginas publicavam notícias de forma coordenada, pautando o ciclo de fofocas da internet brasileira. Cobertura essa que estava bem longe de ser imparcial, com a esmagadora maioria dos perfis gerenciados pela Mynd8 serem não apenas de esquerda como também frequentemente alinhados a pautas do governo Lula.

Conforme mostrado por Penin, essas páginas de fofoca eram usadas tanto para cancelar pessoas inocentes como Jéssica quanto para descancelar membros parceiros da Mynd que foram cancelados naturalmente, como o caso de racismo de Luísa Sonsa. Se fosse do interesse destruir a vida de alguém, a notícia ficaria dias sendo comentada; e se não fosse, rapidamente se mudaria de assunto para a indignação ser  esquecida. 

Caso algo grave aconteça, como a morte de Jéssica, podem lavar as mãos e alegar santidade. Afinal, foram as contas anônimas a promover o assédio online. O truque está em manipular milhões de pessoas a propagar o ódio de maneira orgânica: cada uma dessas milhões de pessoas expressa sua opinião inconformada em relação ao alvo, crente de que são opiniões suas, mas sem nunca perceber que foi manipulada por alguém a dar aquelas opiniões. Pra essas pessoas, os chineses inventaram até mesmo uma palavra: Baizuo (do chinês, a “esquerda branca”)

“Baizuos são caracterizados principalmente por seu uso pesado de politicamente correto e dois pesos e duas medidas para promover secretamente seus próprios interesses materiais ou emocionais às custas de outros, enquanto reivindicam o contrário de uma posição moral superior auto-assumida. Alguns são verdadeiramente não-maliciosos, mas são muito ingênuos ou não têm visão de mundo para fornecer opiniões úteis ou soluções para problemas sociais reais.”

Vendo tudo isso, porque não pensar na regulação das redes e em projetos como o PL 2630? Bem…porque essa é uma armadilha que a Mynd quer que você caia, e que te deixará para sempre na mão deles. Afinal, com uma ferramenta tão poderosa como o cancelamento digital, você acha mesmo que o governo não usaria ela também?

Sintomas de uma Sociedade Doente

Desde que a internet existe, o governo brasileiro a usa como máquina de destruição de reputações. O que hoje é feito pela Mynd8 para o governo Lula era feito pelo gabinete do ódio pelo governo Bolsonaro. E antes do gabinete do ódio, os governos petistas contagem com os MAVs (Militantes em Ambiente Virtual) e com blogs sujos pagos com dinheiro público, chamados de “A Esgotosfera”.

Portanto, uma lei para controlar o discurso nas redes partindo do próprio governo brasileiro não visaria resolver o problema do ódio nas redes, apenas acabar com a concorrência. As Big Techs perceberam isso, e se manifestaram publicamente de que o PL 2630 não estava combatendo as fake news, mas sim estabelecendo uma censura prévia. 

Simplesmente não há confiança de que o governo brasileiro siga  o exemplo do Japão e implemente uma lei que de fato combata o ódio nas redes – ele  foi o seu principal causador nos últimos 20 anos. Logo, mesmo sendo sim preciso irmos atrás de responsabilizar aqueles que espalham ódio e mentiras nas redes, não podemos confiar que isso será resolvido pela implementação de uma nova lei. Essa lei não só não resolveria o problema como seria um bode expiatório pra permitir abusos que o tornaram pior. 

Os canceladores e o discurso de ódio não são a raíz do problema, mas sim um sintoma. Enquanto nossa sociedade viver uma vida atomizada sem sentido, significado, e muito menos um horizonte de expectativas, os cancelamentos não vão parar. Nem mesmo a lei japonesa conseguiu. O que podemos  fazer é ir atrás dos mandantes, as pessoas que “jogam a carne para os cães famintos dilacerarem”, e responsabilizamos eles na justiça. 

Ao mesmo tempo, a solução não virá de uma lei anti fake news. É uma solução que precisa vir de baixo para cima, não de cima para baixo. A única forma de nós conseguirmos nos livrar do cancelamento é lembrando que, apesar de todas as inúmeras dificuldades que passamos, nossas vidas fazem sentido. 


Paulo Grego

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