Recentemente, o SFL Brasil publicou uma postagem com o desenho de duas pessoas lutando boxe; uma de laranja e, a outra, de roxo. A imagem continha a pergunta “criar uma competição sobre quem é mais liberal é defender a liberdade?” Essa postagem fazia alusão a dois grandes núcleos liberais rivais do Brasil, o Partido NOVO e o Livres, e respondia a sua própria pergunta com a resposta “Não é”.
Para meu espanto, porém, houve quem respondesse não apenas que o Partido NOVO não era liberal como também que o NOVO e o MBL seriam na verdade “liberistas”. O que seria um liberista? Bem…parafraseando a definição da pessoa em questão, seria o seguinte:
“O liberista não tem preocupação com a democracia. Ele só se importa com a economia e liberdade de expressão, mas não está nem aí para a democracia. Se, como foi com Singapura, fosse implementado no Brasil uma ditadura que respeitasse um liberalismo econômico na sua forma mais pura, o liberista não só não ligaria como até acharia bom.”
Isso é algo que já ouvi mais de uma vez de liberais sociais, e há inclusive bibliografia para esse termo em grandes nomes como José Guilherme Merquior (CAMPOS, R, 2016, p. 23-25). No entanto, é importante lembrar que “o errado é errado, mesmo que todos se enganem sobre ele” (CHESTERTON , 1908). Nem o NOVO nem o MBL se definem como “liberistas”, e muito menos se encaixam na definição generalista de liberismo apresentada.
Este, portanto, é um texto resposta que busca, da forma mais objetiva e acadêmica possível, expor o conceito de “liberismo”, tal qual usado hoje no debate público, como uma narrativa falaciosa de um nicho liberal social para excluir os liberais clássicos do nosso conceito de liberalismo como um todo.
Qual a definição acadêmica de liberismo?
O termo liberismo surge na década de 1920 com Benedetto Croce, a partir de suas discussões com Luigi Einaudi. Enquanto Einaudi defendia a incompatibilidade entre liberdade política e intervencionismo, Croce tinha uma visão mais aberta à coexistência desses elementos. É nesse contexto que o termo “liberismo” surge como um sinônimo do liberalismo clássico e sua defesa de um estado mínimo (laissez-faire).
O “liberista” é aquele que acredita que, se não houver liberdade econômica, as outras liberdades – a civil e a política – desaparecem.
Roberto Campos
Se fossemos usar termos do debate público atual, a divergência entre “Liberalismo” e “Liberismo” de Croce nada mais seria do que termos antigos para as vertentes do “liberalismo social” e “liberalismo conservador”. São termos nicho utilizados numa época em que os nossos conceitos não estavam totalmente estabelecidos, similar a como André Rebouças utilizava o termo “yankismo” em 1880 para diferenciar seu liberalismo norte americano do resto do liberalismo brasileiro (CARVALHO, 1998, p. 129).
Merquior, no entanto, gostava das discussões nicho entre Croce e Einaudi, e por isso trouxe essa definição nicho ao Brasil para explicar suas visões de mundo (CAMPOS, R, 2016, p. 24). Em outras palavras, o liberismo é uma definição tida hoje como válida apenas entre italianos, onde Croce viveu, e entre alguns brasileiros que adotam essa análise específica de Merquior como visão de mundo.
Isso também envolve a rejeição da distinção entre liberalismo político e liberalismo econômico (elaborada em particular por Croce como uma distinção entre liberalismo e liberismo) Para a tradição inglesa, os dois conceitos são inseparáveis. Com efeito, o princípio fundamental de que a intervenção coercitiva da autoridade estatal deve limitar-se a impor o cumprimento das regras gerais de mera conduta priva o governo do poder de dirigir e controlar as atividades econômicas dos indivíduos.
Frederick A. Hayek
Claro que há motivos para se defender uma separação entre a defesa de um liberalismo econômico e político, uma vez que é válida a crítica de que a sobrevalorização do mercado somada a uma negligência em relação a outras dimensões da liberdade, como as liberdades civis e políticas, poderiam levar a desigualdades sociais, prejudicando a igualdade de oportunidades e a proteção dos direitos individuais. O problema, porém, é semântico.
A armadilha semântica dos liberais sociais
No passado, o socialismo começou a utilizar com maior frequência a promessa de uma nova liberdade. Quando antes, a liberdade significava que o indivíduo estaria livre da coerção e do poder arbitrário, a liberdade prometida pelos socialistas era a de se libertar das necessidades que o limitam (HAYEK, 2010, p. 48). Em outras palavras, um socialista acredita que, se é dependente de algo ou alguém (trabalhar, por exemplo), não é livre. E, enquanto não fosse livre, estaria pra sempre exposto às incertezas da vida (RATZINGER, 2019, P. 28).
Com essa redefinição socialista da palavra “liberdade”, mesmo que as duas definições sustentem princípios totalmente diferentes, poucos perceberam. A promessa dessa nova e maior liberdade atraiu um crescente número de liberais ao socialismo, de modo que o socialismo foi aceito pela maior parte da intelligentsia como o herdeiro da tradição liberal (HAYEK, 2010, p. 49).
Essa subversão semântica foi bem sucedida devido à forma como nós humanos criamos conceitos: observamos as características diferenciadoras que definem o que é este novo conceito, assim como as características omitidas sobre o que ele não é. Então, integramos ambas mentalmente e os condensamos numa palavra representando todas as observações anteriores (RAND, 2022, p.144-146). Dessa forma, ao incluir-se as características socialistas na definição de liberdade, tornou-se possível uma transição ideológica sem ruptura, na qual o socialista abandona as ideias liberais sem nunca abandonar a defesa da liberdade.
E essa mesma armadilha usada pelos socialistas 200 anos atrás é utilizada hoje por aqueles que preferem separar o liberalismo entre “liberais e liberistas” ao invés de entre “liberais sociais e liberais conservadores”. Ambos os termos foram criados no Brasil por Merquior (BERLANZA, 2015), porém, enquanto um deles reconhece a legitimidade de ambas as vertentes como liberais, a outra permite ao liberalismo social excluir seus adversários e tomar para si o conceito de “liberalismo”.
Essa dificilmente foi a intenção original de Merquior ao cunhar o termo, uma vez que o próprio Merquior é chamado de “liberista” por Roberto Campos na apresentação de “Liberalismo – o Antigo e o Moderno”. De fato, quando utilizado como sinônimo do liberalismo clássico, da defesa do livre mercado e do Estado mínimo (laissez-faire), o termo liberismo pode sim ser usado. O que mais ocorre, porém, é seu uso pejorativo por parte de alguns liberais sociais, como visto no início do texto, com o objetivo de descredibilizar o liberalismo clássico (também chamado por Merquior de liberalismo conservador) como uma forma válida de liberalismo.
Pode-se inferir, portanto, que o lastro comum entre liberalismo conservador e liberalismo social é muito mais profundo do que se parece à primeira vista, sendo injustificável a aproximação que expressivas figuras liberais no país – como teria oportunidade de referir – procurem aproximar o liberalismo social da social-democracia.
Antonio Paim
Fica estabelecido então, por meio de fontes acadêmicas, que o liberismo é um termo nicho utilizado como forma alternativa de descrever o liberalismo clássico, mas não uma corrente de pensamento própria valorizando a liberdade econômica em detrimento da democracia.
O liberalismo, por definição, é plural, permitindo o surgimento de múltiplas vertentes: para a teoria liberal clássica inglesa, formada por economistas e filósofos morais como Adam Smith e Stuart Mill, a liberdade significaria independência; enquanto a teoria liberal clássica francesa, formada por historiadores como Guizot e Tocqueville, vê a liberdade como autogoverno; e para a teoria liberal clássica alemã, formada principalmente por juristas, a liberdade significaria a auto realização (CAMPOS, R, 2016, p. 24). Dessas vertentes, os quadros do partido NOVO costumam ser um misto de liberais ingleses, liberais doutrinários franceses, e libertários, devido à sua formação pelo Instituto Liberal e o Instituto Mises Brasil; enquanto o MBL segue princípios neoliberais similar àqueles difundidos por Ronald Reagan e Margareth Thatcher.
Chamar todas essas vertentes rivais de “liberistas” e dizer com isso que elas não são liberais é, portanto, uma tentativa de simplificar um campo complexo e multifacetado, visando monopolizar a definição de liberalismo apenas para os liberais sociais. Logo, o Liberismo como corrente política própria não existe. O que existe, porém, é um perigo ao liberalismo que não deve ser ignorado.
O Fim da História e as democracias iliberais
Ao subverter o conceito de liberdade e se tornar o herdeiro da tradição liberal, o marxismo se apresentou como a única das forças políticas do século XX a reclamar para si a criação de um novo mundo de liberdade, sob a promessa de conhecer o único caminho cientificamente correto para a criação deste novo mundo. O seu fracasso resultou forçosamente numa grande decepção, a qual o sistema liberal que se manifestou com esse desmoronamento não conseguiu suprir. Dessa forma, a inquestionável queda do comunismo resultou também no fim das ilusões esclarecidas e na destruição da concepção em que se baseava o desenvolvimento da história (RATZINGER, 2016, p. 110, 211-212).
A ausência atual de uma alternativa faz o homem levantar questões totalmente novas. A primeira dúvida: quiçá o Ocidente tenha razão? Segunda dúvida: se o Ocidente não tinha razão, quem a tinha então? Já que ninguém tem nenhuma dúvida na Europa que o comunismo não tinha razão, surge a terceira pergunta: será que não há nenhuma razão? Mas, se for assim, então todo o ideário do Iluminismo não tem valor. […] Talvez a veterana máquina a vapor do iluminismo, após dois séculos de funcionamento útil e sem avarias, tenha-se detido ante aos nossos olhos e com a nossa participação.
Joseph Ratzinger
Com isso, o ethos iluminista perdeu seu monopólio ideológico sob as diferentes culturas não ocidentais, estagnando globalmente o processo de democratização e interrompendo o declínio da autocratização. Seja na Hungria, na Rússia, em Singapura, ou em diversos outros países, cresce no mundo o conceito de democracias iliberais, nas quais o sistema democrático é mantido mas não a proteção a direitos individuais e liberdades.
Este processo de autocratização do mundo ocorre atualmente pela chamada erosão democrática, na qual, ao invés de a democracia acabar por meio de um golpe, pequenas mudanças graduais vão se acumulando até que reste muito pouco do antigo sistema democrático (SCHUINSKI, 2022).
Atualmente, o Brasil é um dos 12 países cujo sistema democrático mais está pendendo para a autocracia, de acordo com dados publicados pelo Instituto Variedades da Democracia (V-Dem), um grupo de pesquisa independente sediado na Universidade de Gotemburgo, na Suécia. De fato, os avanços autoritários contra o estado democrático de direito, a censura à liberdade de expressão, e a perseguição aos oponentes políticos tem se tornado cada vez mais comuns nos últimos anos, ao ponto de haver quem questione se ainda estamos numa democracia liberal.
Vivemos num momento chave em nosso país, onde a democracia e as liberdades individuais correm risco de acabar. Diante de tamanho perigo, reforço a mensagem do SFL Brasil de que criar uma competição sobre quem é mais liberal, chamando as outras vertentes de “liberistas”, não é defender a liberdade. Tanto o Livres quanto o NOVO (e até mesmo o MBL) terão um papel fundamental nos próximos anos em impedir o fim da democracia liberal no Brasil. Somos sim todos liberais, e precisaremos de toda ajuda possível para impedir a ameaça que está por vir.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.
Referências
BERLANZA, L. “O Liberalismo antigo e moderno”: um passeio de Merquior pela jornada de uma ideia. Disponível em: <https://www.institutoliberal.org.br/blog/o-liberalismo-antigo-e-moderno-um-passeio-de-merquior-pela-jornada-de-uma-ideia/>. Acesso em: 8 jul. 2023.
CAMPOS, R. Merquior, o Liberista. In: MERQUIOR, J. G. O Liberalismo – Antigo e Moderno. São Paulo: Editora É Realizações, 2016, p.22-25
CARVALHO, M.A.R . O Quinto Século: André Rebouças e a Construção do Brasil. Rio de Janeiro. Editora Revan. 1998. p. 129
CHESTERTON G. K. Considerando todas as coisas, 1908
HAYEK, F.A. Liberalismo. Planeamento, 1997, pág. 62.
PAIM, Antônio. História do Liberalismo Brasileiro, São Paulo: LVM, 2018, p. 314
RAND, Ayn. Objetivismo, São Paulo, LVM, 2022, p. 144-146
RATZINGER, J. Fe, Verdade, Tolerância. São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2016, p. 110, 211-212
RATZINGER, J. Liberar a Liberdade: fé e política no terceiro milênio. São Paulo, Editora Paulus, 2019, p. 28
SCHUINSKI, R. M. . Democracias sofrem erosão antes de ruir – DW – 15/09/2022. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/democracias-sofrem-eros%C3%A3o-antes-de-ruir/a-63116697>. Acesso em: 10 jul. 2023.