A Filosofia da sua Cadeira: uma resenha do Objetivismo de Ayn Rand

A filosofia da sua cadeira: uma resenha do objetivismo de Ayn Rand

“Se uma cadeira é uma cadeira, ela é uma cadeira, não uma janela”. Esta frase da Dama de Ferro Tailize Scheffer pode parecer óbvia e estranha mas, acredite ou não, é uma frase que não apenas nega toda a filosofia ocidental como também resume todo o pensamento político de Ayn Rand! 

Como isso é possível? Bem…estamos acostumados a discutir política usando palavras como “liberdade”, “igualdade” e “racismo”, certo? Mas e se eu te dissesse que as diferenças filosóficas entre os grupos políticos são tão grandes que as pessoas discordam até mesmo sobre o que é uma cadeira? 

 Este texto é uma resenha do livro “Objetivismo: Introdução à Epistemologia e Teoria dos Conceitos”, de Ayn Rand, na qual resumirei não apenas o que pensava a autora, mas também como pensa toda a civilização ocidental. Mas claro! Discutir tanta filosofia complexa assim costuma ser bem difícil, afinal são tantas coisas abstratas que fica até difícil acompanhar! Mas todo mundo entende o que é uma cadeira (afinal você provavelmente está lendo este texto sentado em uma), então é possível explicar tudo isso de um jeito bem mais fácil e didático mostrando como cada escola de pensamento metafísico vê uma cadeira . Vamos lá?

As quatro formas de se ver o mundo

Vemos já na nossa escola sobre Platão e o Mito da Caverna. A partir desse mito, os seguidores de Platão (realistas extremos) dizem que nossos olhos, ouvidos e sentidos seriam incapazes de ver a cadeira como ela é de verdade, pois seriam formas limitadas e imperfeitas de se ver o mundo. 

Pense por exemplo num inseto rodeando uma lâmpada: todos os sentidos do inseto dizem para ele que ele está voando para frente, mas nossos olhos conseguem ver que ele voa em círculos ao redor de uma lâmpada. E o que os nossos olhos não conseguem ver? Nós nem conseguimos distinguir sal de açúcar, então o que garante que o que vemos como uma “cadeira” seja exatamente como ela é na realidade ? Para os platônicos, tudo o que conhecemos no mundo (incluindo a cadeira) são apenas projeções mentais imperfeitas de como ele realmente é, o mundo ideal.

Parece viajado? Aristóteles também achou. Para os aristotélicos (realistas moderados), esse mundo ideal não existe. Mesmo que os nossos sentidos sejam sim limitados para ver uma cadeira como ela realmente é, ela existe no mundo real como algo concreto. Em outras palavras, a cadeira é só uma cadeira (A=A). Não há nada de místico nela que não possa ser atingido com a ferramenta certa. No exemplo do sal e açúcar, mesmo se nossos olhos não conseguem diferenciá-los, basta aquecer os dois que só o açúcar irá derreter e virar caramelo. 

Apesar de tão diferentes, porém, tanto os aristotélicos quanto os platônicos concordam que a existência da cadeira é intrínseca, universal. O que isso quer dizer? Bem…seria como se cadeiras sempre tivessem existido no universo, independentemente dos seres humanos, e nós só a descobrimos um dia. Por isso, tanto os platônicos como os aristotélicos são conhecidos como realistas. As outras duas escolas de pensamento, a conceitualista e a nominalista, discordam disso e defendem que a existência da cadeira é subjetiva.

Para os conceitualistas, “cadeira” é apenas um nome que inventamos para descrever um objeto que existe na realidade: precisávamos de algo para sentar e apoiar a coluna, então chamamos isso de cadeira. 

Já os nominalistas vão além: para eles, não existe verdadeiro ou falso, pois palavras seriam só convenções humanas arbitrárias sem relação com a realidade. Pense neles como platônicos ao contrário: enquanto os platônicos reconhecem viver num mundo imperfeito e buscam se aproximar do mundo verdadeiro; os nominalistas denunciam nosso mundo como uma mentira arbitrária e propõem substituí-lo pelo que eles definiram ser verdadeiro. Em outras palavras, a única coisa que define uma cadeira para um nominalista é só um dia termos decidido que ela existe e tem esse nome. 

Em resumo, Platônicos e Aristotélicos acreditam que cadeiras sempre existiram, e nós apenas as descobrimos, enquanto conceitualistas e nominalistas acreditam que cadeiras são só uma coisa abstrata que inventamos. Mas claro… porque estamos até agora falando de cadeiras?!

A metafísica da política

A forma como essas quatro escolas veem uma cadeira também é válida para valores como bem, mal, justiça,  liberdade de expressão, e discurso de ódio. 

Para os realistas, mais comumente vistos entre cristãos praticantes de ambos os lados do espectro político, esses valores são universais e a base para valores éticos e direitos humanos; enquanto que para os nominalistas, mais comumente vistos na esquerda interseccional (lacradora/woke) e na direita bolsonarista, esses valores podem (e devem) ser subvertidos de acordo com as relações de poder e o benefício da própria ideologia. 

Quando então, por exemplo, vemos o vereador petista Renato Freitas invadir uma igreja em Curitiba, os realistas comparam com um possível caso do mesmo acontecendo do outro lado ideológico, um evangélico fundamentalista invadindo um terreiro, para argumentar que a invasão de um templo religioso em meio a um culto é universalmente injustificável; mas este argumento não funciona com os nominalistas da esquerda pois eles veem um “homem” “branco” “hetero” “cis” “conservador” “cristão” invadindo “um terreiro” como algo diferente de um “homem” “negro” “de esquerda” invadindo “uma igreja”. Isso porque cada uma das palavras destacadas já vem junto de uma definição ideológica diferenciando a priori se a ação é reprovável (evangélico invadindo o terreiro) ou se deve ser relativizada (movimento de esquerda invadindo a igreja).

Perceba como, mesmo que os grupos utilizem as mesmas palavras, não conseguirão chegar a um meio termo, pois a forma como veem o mundo não tem um referencial metafísico comum que permita isso. Mais do que qualquer ideologia política ou moral específicas, são essas quatro escolas de pensamento metafísico que determinam grande parte do pensamento ocidental. 

E Ayn Rand discorda de todas as quatro.

O Objetivismo de Rand vai além de uma mera ideologia política: é uma escola de pensamento metafísica completa e original, que oferece a seus adeptos “uma filosofia para se viver na terra”.

Objetivismo: a arte da mensuração

Vimos acima como os platônicos e aristotélicos veem conceitos como universais e revelados, enquanto os conceitualistas e nominalistas veem-os como inventados. O Objetivismo, no entanto, nega todos eles quando afirma que os conceitos são objetivos. O que isso quer dizer? Basta voltar à primeira frase do texto: “se uma cadeira é uma cadeira, ela é uma cadeira, não uma janela”. Reconhecer que a cadeira é uma cadeira (A=A) nega as escolas de pensamento platônica, conceitualista e nominalista; mas como afirmar que uma cadeira não é uma janela nega a filosofia aristotélica?

Bem…enquanto a definição de cadeira para Aristóteles é metafísica, universal, para Rand, essa definição é epistemológica, ou seja, aquela que explica o maior número de coisas. Em outras palavras, Rand vê a cadeira como algo produzido pela consciência do homem, mas cujo conteúdo é ditado pela realidade. 

Voltemos ao nosso exemplo da cadeira: quando um bebê aprendendo a falar vê cadeiras e janelas, ele não faz ideia do que sejam e muito menos liga pra isso, mas sua mente consegue agrupar os objetos semelhantes entre si e diferenciá-los uns dos outros. 

Neste contexto, são igualmente importantes para a criança as suas mensurações diretas (a cadeira é uma cadeira) e também as mensurações omitidas (a cadeira não é uma janela). Isso porque, uma vez que um conceito é definido numa palavra, ela torna-se uma nova unidade de medida para novas palavras.

O homem pode perceber o comprimento de um metro diretamente; ele não consegue perceber dez quilômetros. Ao estabelecer a relação de metros e quilômetros, ele consegue compreender e saber qualquer distância na Terra; ao estabelecer uma relação entre quilômetros e anos-luz, ele consegue saber a distância das galáxias. – Ayn Rand

 No caso da cadeira, ela pode ser unida a objetos como “mesa”, “cama”, e “armário” para formar o conceito de “mobilia”. E note: não existe nenhum objeto no mundo que define uma “mobilia”, mas aprendemos o que é uma após aprender todos os conceitos que a envolvem. E então, ao guardarmos todos eles numa nova palavra que os resume,  permitimos que nossa mente possa pensar sem ter de ficar reinventando a roda.

Isto também vale para conceitos mais complexos como “depressão”. Consegue imaginar o número de considerações que uma pessoa precisaria fazer de uma vez para descobrir que está com depressão se já não existisse uma palavra definindo detalhadamente esse conceito? Quantos diagnósticos errados ela tentaria? Quantas pessoas a atacariam por acharem ser só frescura? Será que ela aguentaria essa luta até o final? A depressão não é um conceito que sempre existiu, muito menos um que inventamos arbitrariamente, mas sim um que definimos mensurando os fatos da realidade e isolando os melhores tratamentos para ele.

Agora, vamos à parte polêmica.

É possível medir o amor?

Como visto com a palavra “depressão”, a visão Objetivista para a formação de conceitos não é apenas para objetos perceptíveis, como cadeiras, mas também para conceitos abstratos complexos, como “amor” e “justiça”. Parece absurdo? Pois é. Mas você mediria a temperatura em metros? A mensuração exige sempre um padrão adequado. 

Veja o caso do amor, por exemplo: há quem trai a pessoa amada por considerar desejos sexuais mais importantes do que seu amor por ela; há quem a ame mas desista do relacionamento por medo da desaprovação de família e amigos; e há quem daria sua própria vida para salvar sua amada, porque todos os outros valores de sua vida perderiam o sentido sem ela. São três contextos diferentes em que o amor pela pessoa amada tem intensidades diferentes, que foram sim mensuradas pelos três indivíduos ao compará-lo com seus outros valores pessoais. 

Ué…mas então não seria um conceito subjetivo?! De que adianta toda essa análise então se, no final, tudo depende do contexto em que a pessoa está? Nossa consciência é um narrador não confiável que só consegue pensar em casos particulares,  então nenhum conhecimento obtido por ela seria válido, não?

Bem…Não. Inclusive, Rand considera este argumento tão absurdo quanto “um hipopótamo performando dança do ventre, executando giros enquanto se mantém em um só ponto”. Por quê? Simples: porque há uma resposta certa. Apesar de os conceitos de nossas palavras precisarem de um contexto pessoal para serem criados, eles são restritos pela realidade. Não há espaço para o arbitrário no Objetivismo, de modo que aquele que ignorar a realidade não conseguirá ignorar as consequências de ignorar a realidade.

Pense, por exemplo, numa pessoa afirmando que comemos pão ao invés de pedras só por conveniência, e que é super possível sobreviver comendo só pedras. Essa pessoa vai emagrecer cada vez mais e, se ninguém ajudar, vai  morrer de fome. Isso porque não importa qual foi sua experiência de vida ou quantas narrativas diferentes ela descobriu dizendo que tudo bem comer pedras: no fim do dia, o corpo humano não consegue sobreviver comendo pedras. Ela estava errada. E a realidade se impõe. 

A visão de mundo Objetivista, portanto, argumenta não apenas que as pessoas criam palavras para resumir os conceitos que aprenderam, mas também que existe um método correto de medição pelo qual esses conceitos podem ser válidos ou não.

Processo lógico, orgulho ideológico

A lógica, a arte da identificação não contraditória, é vista no Objetivismo como o método fundamental a partir do qual todos os outros dependem. Afinal, se palavras são conceitos definidos pela comparação com outros conceitos, onde agrupamos as semelhanças e separamos as diferenças, podermos fazer essas comparações sem nos contradizermos é essencial!

Respeitado o processo lógico, qualquer pessoa pode chegar à definição correta do que é um conceito. E isso vale tanto para conceitos materiais (a cadeira) quanto abstratos (o amor). Desse ponto de vista, até mesmo uma ciência humana como a ética teria conclusões tão cientificamente precisas quanto às da medicina.

Mas como isso seria possível se tudo depende do contexto da pessoa observando? É simples: uma mesma palavra pode ter significados diferentes, uma vez que nenhum de nós faz as mesmas comparações ao defini-las. No entanto, como o conceito que forma a palavra existe de verdade, outras pessoas podem trazer outras comparações que (quando corretas) expandem a definição anterior. 

Em outras palavras, a natureza não escolhe quais escolhas fazer quando agrupamos conceitos e formamos uma nova palavra; entretanto, se um conceito existe concretamente no mundo, podemos mensurá-lo cada vez mais e, com isso, expandir sua definição para atingir seu significado real e sem contradições. Mesmo eu sendo um homem, por exemplo, sei objetivamente que a dor de ter uma pedra no rim é maior do que a dor do parto, uma vez que houveram mães com pedras no rim que puderam mensurar essas dores e chegar a esta conclusão. 

Infelizmente, este também é o motivo para brigas ideológicas: se as pessoas ficam tempo suficiente acreditando em palavras com significados diferentes, elas irão usá-las para formar novos conceitos, que por sua vez serão usadas para formar ainda mais conceitos. De repente, ideologias inteiras surgem sustentadas por uma mentira, e aceitar uma nova definição verdadeira refutando a anterior significaria que décadas de estudo, livros lidos, saraus participados, artigos publicados, e ativismos feitos foram desperdiçados com uma fantasia falsa, e que todos os conceitos aprendidos desde então precisam ser cognitivamente redescobertos. 

É algo muito inviável e beirando ao doloroso, então é bem raro de acontecer, mas é sim, possível. 

Axiomas: o início de tudo e a raíz para todas as soluções 

Um axioma é algo que é diretamente percebido e que, portanto, não requer nenhuma prova ou explicação. Ele é evidente, incontestável, e inquestionável, de modo que é impossível sequer analisá-lo sem provar que ele está correto. Na escola, é comum vermos axiomas na matemática , como nos casos abaixo:

Se x = 2 e y = 2; então x = y (Axioma 1)

Se x = y; então x + 3 = y + 3 (Axioma 2)

Voltando para a filosofia, os conceitos axiomáticos essenciais são “existência”, “identidade”, e “consciência”. Estes três axiomas juntos são as constantes da consciência humana pelas quais todo o processo lógico se inicia e é derivado: algo existe e estou consciente disso; eu preciso descobrir sua identidade. 

Em outras palavras, mesmo que cada um de nós tenha processos lógicos diferentes para definir nossos conceitos, temos nos axiomas as constantes pelas quais podemos começar o processo lógico do mesmo ponto, e, com isso, chegar a uma mesma resposta certa. 

A partir deles, podemos usar a lógica para obter objetivamente até mesmo as noções de bem e mal, e todos os valores éticos que delas derivam.

(…) conceitos axiomáticos são os guardiões da mente humana e a fundação da razão – a pedra angular, o lidite e o cunho da razão – e para que a razão seja destruída, são os conceitos axiomáticos que precisam ser destruídos – Ayn Rand

Com isso, é possível compreender completamente a base do pensamento Objetivista em três frases: 

  1. Todas as palavras e conceitos que aprendemos na nossa vida foram imitações incompletas produzidas pela nossa mente, mas que são ditadas pelo mundo real. Medindo cognitivamente o mundo ao nosso redor, descobrimos o significado das coisas comparando-as entre si, agrupando semelhantes e separando diferentes.
  2.  Esse processo de medição pode sim obter significados diferentes, uma vez que cada pessoa tem um contexto diferente sobre o que conhece ou quais comparações escolheu fazer. Entretanto, como esses conceitos existem de verdade no mundo, qualquer um pode medi-lo de novo e de novo até que, por meio da lógica, consiga chegar a seu significado verdadeiro. 
  3. Isso ocorre porque, mesmo que cada pessoa tenha uma experiência de vida totalmente diferente, os axiomas da  “existência”, “consciência” e “identidade” são constantes lógicas pelas quais qualquer um deve começar para chegar logicamente a um resultado não contraditório.

Se ler essas frases lhe soar familiar, não é mera coincidência. Afinal, foi o que fiz com você ao longo de todo este texto! Como as cadeiras são objetos bem fáceis de se entender, comparei como cada escola de pensamento via uma cadeira para que você, leitor, pudesse aprender esses conceitos agrupando as semelhanças e separando as diferenças. A cadeira foi o nosso “axioma”, pelo qual todo o processo lógico pode acontecer e eu pudesse lhe explicar a filosofia Objetivista não apenas por palavras, mas por ações.

Esta é a filosofia que Rand nos deu para viver neste mundo. Espero que se lembre dela toda vez que for sentar numa cadeira.


Paulo Grego

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