“Ninguém se lembraria do bom samaritano se ele só tivesse boas intenções. Ele possuía também dinheiro.” Essa célebre frase, pertencente à “dama de ferro” Margaret Thatcher, ilustra muito bem uma realidade difícil de ser digerida. Resumidamente, “o bom samaritano” trata-se de uma parábola bíblica. Na ocasião, um homem da região da Samaria ajudou a outro que estava espancado, após dois religiosos terem se negado a dá-lo suporte. O samaritano cuidou e levou a vítima para um abrigo, e pagou todas as suas despesas. No fim das contas, como bem pontuou Thatcher, o benfeitor só conseguiu ajudar seu próximo graças à sua boa condição financeira. Se ele tivesse apenas a boa intenção de ajudar, mas não possuísse recursos para tal, certamente sua ajuda não seria tão efetiva.
Esse exemplo pode ser usado em vários casos, seja no planejamento de um clube de futebol ou na governança de um país. Não é viável para um time, por exemplo, fazer uma contratação multimilionária, daquelas de fazer a torcida ir buscar o jogador com festa no aeroporto, mas ignorar o fato de que se o valor quando a conta chegar, as dificuldades para arcar com os custos serão imensas. Não são raros os exemplos de casos como esse dentro e fora do Brasil. Obviamente, todo torcedor vai querer ver seu time com o melhor elenco possível, para brigar por títulos em todas as competições, mas a receita do fracasso se dá quando isso é feito de maneira mal planejada, na esperança de que em um passe de mágica as contas do clube desapareçam.
O mesmo vale para um governo. Não há condições de se distribuir “direitos” tais como saúde, educação e segurança, às custas de uma política econômica irresponsável e pouco preocupada com o longo prazo. Obviamente, a miséria, a falta de segurança ou a defasagem na educação são problemas graves e que necessitam ser combatidos. Mas não há a menor possibilidade de existirem todos esses serviços de forma plena em um país, sem que suas finanças estejam controladas.
A herança Peronista
Os nossos “Hermanos”, vivem há décadas um clima de instabilidade política e econômica gerado, dentre outras coisas, pela irresponsabilidade fiscal e má administração de recursos por parte de vários governos que comandaram o país ao longo dos anos. A herança Peronista está arraigada na cultura argentina e o prejuízo causado por essa linha de pensamento é terrível.
Para a surpresa de muitos, a Argentina já foi bastante próspera. No século XIX, o país do tango possuía uma constituição bem similar à dos Estados Unidos, e o ambiente na época era muito favorável aos negócios e à propriedade privada. Já foi, inclusive, um dos países mais ricos do planeta, com uma renda per capita maior do que lugares como Inglaterra e Suíça.
Porém, com a crise de 1929, a Argentina sofreu uma forte instabilidade política, e então ocorreu um golpe de Estado, liderado por José Félix Uriburu. O populismo e o desenvolvimentismo passaram a tomar conta do Governo de forma profunda.
Após algumas reviravoltas em um cenário complexo e conturbado, no ano de 1946 Juan Domingos Perón, que fazia parte do governo de Félix, foi eleito presidente e ajudou a derrubar diversas das políticas de livre mercado que faziam com que a Argentina prosperasse. Isso fez com que o tamanho do Estado aumentasse e o investimento externo fugisse do país. Isso ajudou a causar desemprego e uma inflação cada vez maior. A saída de Juan do poder, em 1973, após outro golpe, não impediu com que o peronismo permanecesse vivo. A mentalidade de que o Estado deveria ser o grande condutor da nação, junto da adoração à imagem de Perón, perdura até os dias de hoje em muitos Hermanos. A Argentina nunca mais foi a mesma desde a implementação dessa corrente.
No início dos anos 90, ainda adotou-se uma reforma econômica no país que funcionou bem no início, com uma política austera de gastos controlados e uma moeda lastreada em dólar. Isso durou até que a crise no México nessa mesma década provocasse uma recessão na Argentina, o que culminou no péssimo e velho controle estatal como resposta, com o governo limitando até mesmo a quantidade de dinheiro que a população podia sacar no banco.
Atualmente, o país do craque Messi amarga uma inflação que beira os três dígitos. A miséria tomou conta da Argentina, graças às décadas de populismo, centralização de poder e falta de livre comércio.
Como atingir “outro patamar”
No mundo do futebol, o Flamengo, time de maior torcida do Brasil, tomou nos últimos anos o caminho reverso do escolhido pela Argentina no século passado. O time carioca que, ultimamente, vem empilhando taças importantes, teve que passar por uma política muito severa de contenção de gastos e planejamento financeiro para poder arcar com as despesas de forma sustentável.
O rubro negro, apesar de sua grandeza, viveu desde a época de seu ídolo Zico, nos anos 80, apenas lampejos de boas campanhas nos campeonatos em que disputava, e possuía a fama de ser um clube “caloteiro”. Ronaldinho Gaúcho, Denilson e Romário, são exemplos de jogadores que saíram do clube por atrasos no pagamento. Apesar de terem feito parte da equipe em gerações diferentes, os jogadores sofreram com o problema crônico que assolava o clube: a irresponsabilidade fiscal.
No ano de 2012, o Presidente eleito do rubro-negro Bandeira de Melo, adotou um discurso que, embora impopular, era justamente o que o time da Gávea precisava para se reerguer. Em uma de suas primeiras falas para a imprensa como presidente, ele reiterou a necessidade de adotar-se uma política austera para que o clube conseguisse almejar coisas maiores no futuro.
“Se dentro de campo nós sofremos com o time, fora de campo a situação é mais preocupante. Hoje o Flamengo tem a justa fama de clube mau pagador, não tem transparência, não tem qualidade na governança, chega a ser irresponsável no papel de contribuinte. (…) Como vamos poder cobrar dos nossos atletas conduta responsável se não damos a contrapartida?”
Essa fala marcou o início de uma nova era para o Flamengo. A nova gestão teve que lidar com uma dívida de R$750 milhões logo de cara. Mesmo com o título da Copa do Brasil em 2013, primeiro ano da nova diretoria no comando, a vida dos flamenguistas não foi fácil no início. O clube passou a captar mais recursos e registrar lucro após um bom período de déficits, além de melhorar a estrutura do Centro de Treinamento, mas os títulos custaram a aparecer. Com a casa em ordem, Rodolfo Landim foi eleito em 2018 e montou um time recheado de craques, como Gabigol, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Arrascaeta, só que dessa vez sem loucuras para agradar à torcida, somente. Tudo isso foi planejado e financeiramente viável. Desde então, o Flamengo conquistou nada menos que duas Libertadores, dois campeonatos brasileiros e uma Copa do Brasil, para citar os títulos de maior relevância. Além disso, seu faturamento hoje chega na casa de R$1 Bilhão. Após anos de espera, o clube finalmente chegou a “outro patamar”.
A hegemonia brazuca
Os times argentinos, por sua vez, estão sofrendo com essa diferença de poder de investimento, não só do Flamengo, mas também de clubes que passaram por processos parecidos, como é o caso do Palmeiras.
Além da responsabilidade das equipes, a moeda brasileira, o Real, possui um desempenho bem melhor que o peso argentino, e isso faz com que clubes como Boca Juniors e River Plate, que em outras oportunidades eram tidos como os bichos papões das Américas, sejam apenas coadjuvantes no torneio mais disputado da América do Sul: a Libertadores.
Os clubes brasileiros têm, hoje, muito mais facilidade para contratar jogadores de outros países sul-americanos, além da possibilidade de resistir por mais tempo às investidas de clubes europeus aos seus jogadores. Prova disso, é que nos últimos quatro anos, a Libertadores teve como campeões Flamengo (2x) e Palmeiras (2x), além do vice-campeonato ter ficado também no Brasil em três dessas quatro oportunidades.
A lição que fica, é que seja em um governo, como é o caso da Argentina, ou em um clube de futebol, como o Flamengo, a saúde fiscal e, no fim das contas, o capitalismo, são fundamentais para que se possa investir e obter rendimentos a longo prazo. O populismo, em qualquer esfera, torna-se nocivo à medida em que o “bom samaritano” não consegue arcar com seus atos “benevolentes”.
*As opiniões do autor não representam o Damas de Ferro enquanto instituição