A cota de gênero na política: teoria e prática

Com o intuito de fomentar a participação de mulheres na política, a Legislação eleitoral instituiu a chamada “cota de gênero”. Segundo o dispositivo legal vigente, cada partido ou coligação deve preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% de candidaturas de cada sexo nas eleições proporcionais (1), nos termos do art. 10º, §3º, da Lei 9504/97 (2). O não cumprimento da mencionada reserva é causa suficiente para o indeferimento integral dos pedidos de registro de candidatura da legenda.

Apesar da referência a “gênero” e “sexo”, a cota acaba, em regra, direcionada para as mulheres, porquanto, na prática, o número de candidatas dificilmente atinge 30% das candidaturas lançadas, mirando justamente na correção dessa desigualdade.

A medida é justificável se o foco recai no viés quantitativo, comparando-se, isoladamente, a proporção de candidatas e candidatos. A necessidade de aumento da representatividade feminina também é um argumento encampado em prol da causa, já que mulheres seriam mais sensíveis a pautas de interesse do universo feminino, o que, teoricamente, faria sentido.

Entretanto, empiricamente, desde a implantação da obrigatoriedade da reserva de gênero — cuja redação atual foi concebida em 2009, diga-se — constatam-se tentativas de burlar a referida cota com a apresentação de candidaturas femininas fictícias ou “laranjas”. O tema é sensível aos servidores, magistrados e promotores eleitorais, sobretudo pelo fato desse corpo de trabalho ter contato direto com os registros de candidatura, a apuração das Eleições e as prestações de contas de campanha. Os dados analisados podem indicar e até mesmo subsidiar demandas judiciais, como a ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) (3) e a ação de impugnação de mandato eletivo (AIME) (4), com vistas à constatação de fraude ao cumprimento do mínimo estabelecido para o gênero, como se vê, largamente, em qualquer pesquisa de Jurisprudência sobre o assunto.

A título de exemplo, em consulta jurisprudencial ao sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a pesquisa “fraude cota de gênero” retorna 68 processos. Por sua vez, o TRE-MG aponta 231 documentos e o TRE-SP, 104, para citar aqueles que apresentam números mais expressivos em relação aos demais regionais, estando Minas Gerais e São Paulo dentre os cinco maiores colégios eleitorais do país (terceiro e primeiro respectivamente, conforme dados de 2020 do TSE (5)).

Os dados públicos compilados pela Justiça Eleitoral nas prestações de contas de campanha junto a outras balizas podem indicar a existência de candidaturas fictícias ao revelarem a uniformidade de algumas ocorrências, como, por exemplo: 1) ausência de atos e, consequentemente, de gastos de campanha; 2) votação inexpressiva, havendo casos de a candidata não auferir nenhum voto (ou seja, nem a própria candidata votou nela mesma); 3) comprovação de pedido de votos para outro candidato que dispute o mesmo cargo da candidata na mesma circunscrição.

O item 1 seria um indício de fraude por indicar que não houve empenho e interesse na promoção da campanha e eleição da candidata, especialmente, se houve repasse de recursos públicos do Partido para os candidatos em detrimento das mulheres. Já os dois últimos itens representam, obviamente, a nítida ausência de interesse da própria candidata em se eleger.

Em razão disso, a legislação e a jurisprudência têm se moldado no sentido de aprimoramento e consolidação de meios que coíbam tais práticas fraudulentas. Em 2018 foi instituída a obrigatoriedade de destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) às candidaturas femininas (§3º, art.19, da, Res. TSE 23.553/2017). Também definiu-se igual percentual ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita na Rádio e na TV.

Já em relação ao chamado “Fundo Partidário”, o §4º, do art.17, da Resolução TSE 23.463/2015, que regeu as prestações de contas de campanha de 2016, já previu que os partidos deveriam destinar ao financiamento de campanhas de suas candidatas no mínimo 5% e no máximo 15% do montante dessa verba pública. Em 2018, a Res. TSE 23.553/2017 inovou ao acrescentar o direcionamento de no mínimo 30% dos gastos totais contratados com esse recurso às candidaturas femininas, o que se manteve para as Eleições de 2020.

Na mesma linha, o artigo 44, V, da Lei 9096/95, popularmente conhecida como a Lei dos Partidos Políticos, obriga, desde 2009, que no mínimo 5% dos recursos oriundos do Fundo Partidário sejam aplicados “na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação políticas das mulheres”.

Ou seja, ao obrigar a utilização efetiva de parcela significativa de verbas públicas destinadas ao órgão partidário (6), o sentido da lei seria justamente impedir o mero cumprimento formal da porcentagem exigida no momento do registro de candidatura, e, assim, propiciando que haja investimento efetivo nessas campanhas na tentativa de obstar que sejam simplesmente abandonadas em seu curso e sem qualquer iniciativa real de fomento e incentivo para eleição durante o período de campanha.

Mas será que esta ação afirmativa e as medidas dela decorrentes são promissoras em cumprir o que buscam? Isto é: houve, de fato, o aumento significativo de candidatas eleitas? E, ao mudar o foco do viés quantitativo para a causa da menor representatividade feminina, a justificativa que embasa a existência de cotas ainda prevaleceria?

Efetividade da reserva de gênero

Após a instituição da cota de gênero compulsória em 2009 houve, no Brasil, cinco eleições (2012, 2014, 2016, 2018 e 2020). Desde então, a porcentagem de candidatas aos pleitos proporcionais flutuou entre 30,41% e 33,6%, no limiar dos 30% exigidos. Comparando-se os dados referentes às Eleições Municipais de 2012 e 2016, não houve significativa alteração do percentual de mulheres eleitas, já que em todas as regiões a eleição feminina manteve-se na faixa de 10% a 15% do total de vagas ocupadas. Em 2012 e 2016, o percentual total de vereadoras eleitas chegou a 13,13% e 13,5% do total respectivamente, passando para 16% em 2020 (7).

Considerando-se as Eleições Gerais de 2014 e 2018, há uma melhora pontual nos índices de algumas regiões, porquanto se observa um avanço de nove pontos percentuais na Região Norte (de 13,51% para 21,08% de deputadas estaduais eleitas) e um salto de 9,76% para 24,39% de deputadas federais eleitas no Centro-Oeste. Entretanto, relevante também a discrepância observada no cargo de deputada estadual do Centro-Oeste, em que o percentual foi puxado para baixo, indo dos já inexpressivos 9,28% em 2014 para 5,31% em 2018.

No Nordeste, também sobreleva a baixa proporção de deputadas federais que passaram de 6,62% para 7,95% do total, ainda comparando-se 2014 e 2018. Nas demais Regiões do país houve alguma melhora, variando a proporção de candidatas eleitas entre os patamares de 12,08% a 16,71% do total.

De todo modo, no universo apresentado, a desigualdade ainda se mostra relevante, não chegando, em nenhum caso, a sequer 30% de ocupação feminina nas Câmaras Legislativas do país (8). Ou seja, o percentual de vagas reservadas ainda está distante de se converter em mandatos na mesma porcentagem, ao menos, do mínimo estabelecido de 30% de candidatas.

Portanto, a obrigação legal de apresentação mínima de candidaturas femininas e seus desdobramentos, embora sejam intencionalmente louváveis, têm se mostrado pouco eficazes, além de configurarem uma nova forma de resistência estabelecida na prática eleitoral: o fenômeno das candidaturas femininas fictícias. Mas por qual razão?

Causas da desigualdade de gênero na política

Uma argumentação comum que ampara a justificativa para a desigualdade de gênero diz respeito ao machismo arraigado na sociedade, que seria uma espécie de “machismo estrutural”. Dentro dessa lógica, a cultura machista acarretaria o preconceito em relação à presença de mulheres na política, no sentido de que elas não desempenhariam a contento esse papel de liderança, função que seria eminentemente masculina nessa perspectiva.

Nesse espectro, argumenta-se que as mulheres “ainda lutam com muito sacrifício por condições de igualdade com os homens no processo eleitoral em si, travando verdadeiras guerras internas para garantirem as candidaturas, espaço na propaganda eleitoral, financiamento de campanha, entre outros” (9).

Entretanto, conforme exposto anteriormente, diversas medidas vêm sendo sistematicamente implementadas desde 1995. As infrutíferas menções e recomendações expressas em leis dos anos 90 evoluíram para a cota compulsória em 2009, que vige até o momento. Após, em vista das candidaturas “laranjas”, normatizou-se também a reserva destinada às mulheres de 30% de recursos públicos e de 30% do tempo de rádio e televisão, o que já foi aplicado nas Eleições Gerais de 2018.

A ideia seria justamente coibir as candidaturas fictícias que se revelaram a partir da compulsoriedade da cota em 2009, induzindo os partidos a de fato investir financeiramente nas campanhas das candidatas, além de dar visibilidade às mulheres via propaganda eleitoral, com o intuito de que se concretizasse os atos de campanha esperados.

Contudo, mesmo com essa inovação, o aumento de candidatas eleitas foi pequeno relativamente a 2012 e 2016, recrudescendo de cerca de 13% para 16% em 2020. Portanto, apesar de empreendidos esforços e medidas legais durante quase três décadas, não se verifica adesão importante das mulheres no cenário político, ainda que gradativamente.

Seria então o machismo a causa principal da falta de espaço das mulheres na política? Não há dúvidas de que o machismo ainda é um problema social relevante e que irradia na sociedade brasileira, mas não seria ele a causa determinante nesse caso. Quando se analisa os fatos e os dados, verifica-se uma sucessão de tentativas de fomento à inclusão feminina, inclusive por medidas coercitivas, que até o momento não trouxeram resultados expressivos (10).

Disso se deduz que meios externos de inserção feminina esbarram em questões individuais próprias das mulheres. Há de se considerar na equação que as mulheres em geral podem não ter tanto interesse na atividade política, mais propensas à escolha de outras carreiras. A questão deve se voltar então para a sua vontade interna em vez de se buscar corrigir essa desigualdade por meio de sucessivas pressões externas, as quais têm se revelado inócuas notadamente em razão de aspectos subjetivos e volitivos inerentes ao indivíduo, no caso a mulher.

Dessa forma, a narrativa centrada no machismo e preconceito traz em si mais uma carga ideológica do que uma constatação empírica. Isso porque não há amparo na realidade quando as teorias aventadas e as respectivas ações empenhadas para superá-las não têm ampliado significativamente a participação feminina, sucumbindo, assim, a diversos testes ao longo de quase três décadas.

Ademais, o eleitorado brasileiro é composto em sua maioria por mulheres, as quais representam 52,5% dos eleitores (11). Dessa forma, uma vez superado o machismo para haver a presença considerável de opções de candidaturas femininas (não eleitas) então as próprias mulheres seriam machistas ao não votarem em outras mulheres? Isso seria decorrência do machismo estrutural que também seria impeditivo da própria mulher expressar esse seu (suposto) desejo de representatividade “mais autêntica” por razão das eleições? Não faz sentido.

Outro fator importante a se considerar é o sentimento de descrédito da população na totalidade em relação à classe política brasileira. Não é absurdo pensar que os eleitores não alimentam esperanças de que seus anseios sejam verdadeiramente atendidos pelos políticos, buscando, ao revés, seus próprios meios de sobrevivência, de aquisição de qualidade de vida e de evolução como indivíduo e sociedade, apesar da classe política. E isso certamente também contribui para o afastamento das mulheres desse cenário.

No âmbito da representatividade estatal, deve-se ainda considerar que existem outras formas de as mulheres se sentirem representadas, seja por meio de partidos ou de políticos que engendram pautas de interesse das mulheres, independentemente do gênero do detentor do cargo. As mulheres também podem se espelhar em políticos gays e trans, que geralmente defendem as causas femininas, sendo as mulheres também sensíveis, em regra, às causas da comunidade LBTQ+, num sentimento natural de empatia e reciprocidade.

Assim, não parece que uma intervenção externa mudará o quadro político por ora. Obviamente, no futuro, pode ser que haja uma necessidade maior de ocupação desses espaços pelas próprias mulheres e que naturalmente as mova internamente na efetivação de seus interesses. Mas tudo isso a partir de um desejo individual, de maneira orgânica e voluntária, é que se pode vislumbrar uma correção real dessa alegada distorção de representatividade ou tudo não passará de mera abstração legal, artificial e inefetiva.

Ademais, é razoável admitir que num cenário atual de desenvolvimento da liberdade de escolhas femininas as mulheres brasileiras tenham, por avaliação própria, optado por um engajamento maior de suas forças para o desenvolvimento profissional em maiores e melhores cargos da iniciativa privada e do Estado, como se tem observado paulatinamente e, isso, em detrimento de participação na representação política.

Assim, se mostra preciso considerar, como uma espécie de empoderamento feminino a sua liberdade de, simplesmente, não querer integrar massivamente a classe política, optando, em contrapartida, pelo exercício de atividades outras que se mostrem mais adequadas e proveitosas às particularidades da mulher brasileira atual, exercendo, como deve ser, o seu sagrado direito de escolha.


* As opiniões do autor não representam o Damas de Fero enquanto instituição

Referências

(1) As eleições proporcionais englobam as disputas para cargos do Legislativo, no caso, vereador, deputado estadual e federal, incidindo as cotas de gênero apenas nestes casos.

(2) Desde 1995 já são explícitas menções ou recomendações legais no tocante à reserva de gênero no Brasil. Mas apenas com a Lei nº 12.034/2009, conhecida como “minirreforma eleitoral”, que alterou a Lei das Eleições, houve obrigatoriedade de cumprimento da reserva de gênero. Para dar efetividade à norma, a referida lei substituiu a expressão “deverá preencher” por “preencherá”, instituindo o modo mandatório do dispositivo vigente, forçando, desse modo, o preenchimento das vagas pelo partido. (MACHADO, Amanda Bretas. A fraude nas cotas de gênero: análise do julgamento do RESPE 19.392-PI e suas implicações jurídicas. Disponível em: http://eje.tre-ba.jus.br/pluginfile.php/16113/mod_label/intro/AMANDA-revisado.pdf. Acesso em: 13/01/2022.)

(3) É possível verificar, por meio da ação de investigação judicial eleitoral, se o partido político efetivamente respeita a normalidade das eleições prevista no ordenamento jurídico — tanto no momento do registro como no curso das campanhas eleitorais, no que tange à efetiva observância da regra prevista no art. 10, § 3º, da Lei das Eleições — ou se há o lançamento de candidaturas apenas para que se preencha, em fraude à lei, o número mínimo de vagas previsto para cada gênero, sem o efetivo desenvolvimento das candidaturas. (Recurso Especial Eleitoral nº 24342, Acórdão, Relator(a) Min. Henrique Neves Da Silva, Publicação: DJE — Diário da justiça eletrônica, Tomo 196, Data 11/10/2016, Página 65–66)

(4) O conceito da fraude, para fins de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10, da Constituição Federal), é aberto e pode englobar todas as situações em que a normalidade das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por ações fraudulentas, inclusive nos casos de fraude à lei. A inadmissão da AIME, na espécie, acarretaria violação ao direito de ação e à inafastabilidade da jurisdição (Recurso Especial Eleitoral nº 149, Acórdão, Relator(a) Min. Henrique Neves Da Silva, Publicação: DJE — Diário da justiça eletrônica, Data 21/10/2015, Página 25–26)

(5) Dados do Tribunal Superior Eleitoral disponíveis em https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais

(6) Para a eleição geral de 2020 o valor do FEFC somou mais de dois bilhões de reais. Já em relação ao Fundo Partidário, os partidos receberam mais de R$ 934 milhões no exercício de 2020 

(Disponível em: https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2020/prestacao-de-contas/fundo-especial-de-financiamento-de-campanha-fefc e https://www.tse.jus.br/partidos/contas-partidarias/fundo-partidario-1/fundo-partidario#ancora-2)

(7) Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/708248-mulheres-representam-16-dos-vereadores-eleitos-no-pais/. Acesso em: 14/01/2022.

(8) Dados disponíveis em Tribunal Superior Eleitoral disponíveis em https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais e em http://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/5915 (MARTINS, Cáio César Nogueira. A cota de gênero em benefício de candidatura de mulheres: Essência, preenchimento, aferição e estatísticas. Revista Democrática, Cuiabá, v.5, 2019, fls.30–31).

(9) BLASZAK, José Luiz. Democracia interna dos partidos. In: SILVA, Tiago Reis. Enfrentamento Jurídico das candidaturas fictícias como fator de inserção da mulher no círculo político partidário. POUSO ALEGRE, 2019. Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Constitucionalismo e Democracia do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Orientador: Prof. Dr. Cristiano Thadeu e Silva Elias.

(10) “[…]Apesar de o Brasil contemplar em seu ordenamento a cota de gênero, não tem logrado avançar na promoção política das mulheres, ocupando a última colocação dos países da América do Sul em termos de percentual de mulheres eleitas para mandato parlamentar. […] (SILVA, Tiago Reis. Enfrentamento Jurídico das candidaturas fictícias como fator de inserção da mulher no círculo político partidário. POUSO ALEGRE, 2019, fl.12. Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Constitucionalismo e Democracia do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Orientador: Prof. Dr. Cristiano Thadeu e Silva Elias).

(11) https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais

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