A Guerra de Canudos

A Guerra de Canudos

A Guerra de Canudos foi uma das maiores insurreições na história do Brasil, e um dos eventos mais traumáticos da nossa história. E isso não apenas pela brutalidade dos confrontos, mas pela sua relevância como símbolo de resistência contra a opressão de um estado totalmente alienado ou simplesmente desinteressado com os reais anseios da população. Liderada por Antônio Conselheiro, essa comunidade estabeleceu-se no sertão nordestino, onde criou uma sociedade autossuficiente e sem interferência do governo, desafiando diretamente a recém-estabelecida República brasileira.

Com aproximadamente 25 mil habitantes, Canudos abrigava uma população formada por ex-escravos, indígenas e sertanejos desempregados e beatos, em uma área comparável ao tamanho de uma cidade pequena. No entanto, o que realmente distinguia Canudos das outras cidades ao redor era sua prosperidade baseada na cooperação e na ausência de impostos, tornando-se um verdadeiro refúgio de liberdade dos coronéis, da cobrança dos impostos estabelecidos pela república recém instaurada e pela prosperidade em meio ao deserto da miséria nordestina.

Essa prosperidade, contudo, trouxe consigo a ira do governo brasileiro, que via naquela comunidade uma ameaça ao seu poder. A República, ainda em seus primeiros anos, não podia permitir que uma sociedade florescesse sem sua presença, principalmente, se essa sociedade se baseasse em ideias que eram contra os ideias republicanos, (como a defesa da monarquia como direito divino e a abominação a cobrança de impostos), e o resultado foi um confronto sangrento que culminaria na destruição total de Canudos. A disputa pelo controle e a repressão violenta que se seguiu revelam a fragilidade de um governo que, ao invés de apoiar seu povo, e buscar soluções para seus problemas e necessidades, optou por esmagar aqueles que ousaram encontrar soluções para as próprias dificuldades e sonhar com um mundo diferente.

O PEREGRINO

Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro, foi uma figura carismática e mística que se tornou o líder espiritual e político da comunidade de Canudos. Nascido em 1830, no interior do Ceará, Conselheiro percorreu os sertões nordestinos durante anos, pregando a palavra de Deus e defendendo a restauração da monarquia em um Brasil que acabara de se tornar uma república.

Filho de uma família humilde, Antônio Conselheiro sofreu uma série de tragédias pessoais que o levaram a adotar uma vida de peregrinação. Sua pregação atraía multidões, principalmente os mais pobres, que viam em suas palavras uma promessa de salvação e justiça em um mundo marcado pela miséria e o descaso do poder público.

Naquela época, o sertão nordestino enfrentava uma grave crise, agravada pelos fatores climáticos, como a seca implacável que tornava o solo infértil para qualquer cultivo, além da fome e do desemprego que assolavam a região.

Em 1893, ele e seus seguidores estabeleceram-se em Canudos, na Bahia, onde fundaram a comunidade de Belo Monte. Sob sua liderança, Canudos se transformou em um refúgio para milhares de sertanejos, ex-escravos e outros marginalizados, que viviam à margem da sociedade. A comunidade prosperou sem a intervenção do Estado, praticando uma economia de subsistência e se organizando de maneira autônoma, o que fez com que as elites políticas da região e o governo brasileiro vissem em Antônio Conselheiro e em Canudos uma ameaça ao seu poder. Sendo considerado pelas autoridades da República como um agitador perigoso, devido à sua defesa fervorosa da monarquia e da Igreja Católica como única legítima autoridade de governo. Para ele, a República, com seus altos impostos e o descaso com os ex-escravos após recente abolição da escravidão, havia lançado muitos ex-escravos à própria sorte, forçando-os a vagar pelos sertões sem condições mínimas de sobrevivência.

A negligência do governo para com o povo nordestino, os ex-escravos, os indígenas e os sertanejos em geral, levou uma população de aproximadamente 25 a 30 mil pessoas a se organizar em torno de Antônio Conselheiro, buscando em Belo Monte melhores condições de vida, as quais o Estado lhes negava. A comunidade de Canudos, sob a liderança de Conselheiro, tornou-se um símbolo de resistência contra um sistema que, para muitos, parecia alheio às necessidades e sofrimentos dos mais pobres.

O ARRAIAL: A Sociedade Autossuficiente de Belo Monte

Canudos era uma cidade independente, onde o governo não tinha qualquer atuação e não havia cobrança de impostos, o que gerava incômodo entre os fazendeiros e políticos da região. Esse fato não é surpreendente, dado que a cidade foi fundada sem qualquer assistência estatal e conseguiu prover as necessidades básicas para a população nordestina através da organização comunitária.

Os habitantes de Canudos, que possuíam gado e terra para cultivar, se organizaram de forma autônoma para garantir sua subsistência e segurança. A administração da cidade era conduzida por Antônio Conselheiro e seus “doze apóstolos”, responsáveis por gerenciar a economia, a vida civil, a vida religiosa e até mesmo a guarda de guerra.

Esse modelo organizacional demonstra que a ausência de um Estado não implica a falta de governança ou de ordem. Como destacou Frédéric Bastiat:

“A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo fato dos homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de vida, liberdade e propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis.”

(Bastiat, A Lei, p.11)

AS EXPEDIÇÕES: A Resposta Brutal do Governo

No entanto, a paz em Canudos não duraria por muito tempo. Em 1896, um incidente provocou uma escalada das ofensivas do governo contra a cidade. Comerciantes de Juazeiro, a entregar toras de madeira que haviam sido compradas pelos conselheiristas para a construção de uma nova igreja em Canudos, diante da desonestidade dos vendedores de madeira, os compradores disseram que buscariam a madeira, e, se preciso, fariam uso da força. Isso foi o sufiente para o juiz da cidade os políticos locais iniciarem a maior algazarra sobre uma iminente invasão de fanáticos a cidade de juazeiro. Em resposta, o governador baiano enviou uma tropa de pouco mais de 100 soldados para enfrentar o arraial, que acabou derrotada pelos conselheiristas sem grandes perdas.

Após essa derrota, o governador intensificou a repressão e enviou uma nova expedição militar, agora composta por mais de 600 soldados armados com mosquetões e metralhadoras. Mais uma vez, os soldados do governo foram derrotados pelos defensores de Canudos, que, apesar de estarem mal equipados com facões de folha-larga, chuços de vaqueiro (cacetetes de madeira), foices e varapaus, conseguiram repelir a ofensiva.

Após essa série de confrontos, a guarda de Conselheiro se fortaleceu com as armas capturadas dos soldados derrotados e lançou uma série de ofensivas contra Belo Monte. A situação dos conflitos revelou uma peculiaridade: a resistência em Canudos foi alimentada não apenas pela necessidade de defender a cidade, mas também pelo desejo de recuperar a dignidade e os direitos desrespeitados pela autoridade governamental.

Observe que os seguidores de conselheiro encontravam-se em uma situação de livre troca ao ter pago por algumas madeiras a um grupo de comerciantes que, por sua vez, se recusava a entregar a mercadoria. A madeira, já paga, era agora propriedade exclusiva dos conselheiristas, o que, em teoria, lhes daria o direito de utilizar a força necessária para recuperar o que lhe pertencia ou, ao menos, para garantir o retorno do valor pago.

Embora pudesse recorrer à força para reivindicar seus direitos, é provável que Conselheiro preferisse inicialmente uma abordagem mais diplomática, optando por resolver a questão de forma pacífica. No entanto, a resposta do Estado foi desproporcional. Em vez de buscar uma solução equilibrada para um conflito meramente comercial, o governo iniciou uma série de ofensivas contra uma sociedade que até então havia vivido em paz. Essa intervenção não apenas exacerbou o conflito, mas também revelou a tendência do aparato estatal brasileiro de intervir de maneira brutal e desmedida em situações que poderiam ter sido resolvidas de forma mais sensata.

É curioso observar como aqueles que estão no poder, sempre que se sentem ameaçados, se colocam na posição de criar narrativas distorcidas para justificar suas ações, muitas vezes exacerbando ainda mais os problemas que supostamente pretende resolver. O caso de Canudos é um exemplo claro dessa tendência. A negligência do governo federal em relação à população pobre do sertão nordestino e a imposição de altos impostos contribuíram diretamente para a crise.

Em vez de buscar soluções para os problemas sociais e econômicos, o Estado preferiu atacar um grupo que, em sua essência, apenas tentava encontrar uma forma de sobrevivência e dignidade. Com o tempo, a imagem de Canudos foi distorcida pela mídia e pelos políticos, retratando a comunidade como um movimento radical que pretendia restaurar a monarquia. Essa percepção errônea levou a uma pressão crescente sobre o presidente Prudente de Morais, que, submetido a críticas de militares, escritores e jornalistas, viu-se forçado a agir contra Antônio Conselheiro e sua comunidade, intensificando ainda mais o conflito.

Até os dias de hoje, o jogo político parece não ter mudado muito. Nas eleições, é comum que se demonstre o oponente como o “anti-Cristo” da Terra, transformando o debate em uma questão de quem parece menos ruim dentro de uma narrativa muitas vezes distorcida. A verdade é que, frequentemente, a narrativa está profundamente errada.

Sob crescente pressão, foi organizada uma terceira expedição militar pelo exército brasileiro, composta por 1.300 homens e equipada com seis canhões. Esta expedição foi liderada pelo coronel Moreira César, um veterano com um passado de brutalidade, famoso por sua atuação na repressão da Revolução Federalista, onde ordenou a execução de mais de cem pessoas, chegando a ser chamado de “corta cabeças” por conta dos métodos cruéis utilizados por ele e seus subordinados.

Curiosamente, Moreira César encontrou um destino semelhante ao seu próprio método de combate. As forças de Antônio Conselheiro conseguiram derrotar novamente o exército, eliminando o coronel e o segundo chefe da guarda, Pedro Nunes Batista Tamarindo, forçando as tropas a recuar mais uma vez, e armando ainda mais os conselheiristas.

A sociedade que se formara pela livre iniciativa de pessoas em situação de miséria no nordeste do Brasil não apenas havia conseguido criar melhores condições de vida em Belo Monte, como também demonstrava uma resiliência notável ao resistir três vezes às ofensivas do exército brasileiro e das guardas da Bahia. O comércio, a comida e o lar que ofereceram aos que estavam dispostos a trabalhar pela construção da cidade evidenciaram uma capacidade de autossuficiência impressionante.

No entanto, a narrativa crescente de que Antônio Conselheiro buscava restaurar a monarquia — uma mentira deslavada — intensificou-se nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e na própria capital da república. O pânico entre os poderosos era tal que chegaram ao ponto de mandar assassinar Gentil José de Castro, gerente de dois jornais monarquistas, na tentativa de silenciar qualquer voz dissidente.

Sob pressão crescente, foi organizada a quarta expedição militar, que resultou em uma série de batalhas intensas. A resposta brutal do Estado à autossuficiência e ao espírito de resistência de Belo Monte revela um padrão constante: o medo e a paranoia muitas vezes distorcem a verdade e levam a ações desproporcionais contra aqueles que são vistos como ameaças, reais ou imaginárias.

O FIM do arraial: A Destruição de Canudos

A pressão sobre o governo para reagir após as derrotas vistas como humilhantes foi tamanha que, em junho de 1897, o general Artur Oscar de Andrade Guimarães chegou a Canudos, onde enfrentaram combates intensos em Cocorobó, resultando em várias baixas, mas conseguiram finalmente impor um cerco ao arraial. No entanto, a situação para os militares não melhorou muito; as tropas sofreram com a falta de alimentos e suprimentos, o que dificultou ainda mais seu avanço.

Enquanto isso, o grupo de Antônio Conselheiro, bem equipado com as armas deixadas pelos últimos combates e animado pela determinação de defender sua comunidade a todo custo, continuava a oferecer uma resistência feroz. A situação se agravou ainda mais quando, em agosto de 1897, o marechal Carlos Machado se instalou no Monte Santo com o objetivo de acabar com a insurreição que havia tomado conta da região.

Após meses de batalhas árduas e prolongadas, a resistência de Conselheiro chegou ao fim em 22 de setembro, quando ele morreu, supostamente devido a uma doença. Apesar de uma falsa promessa de que a população seria poupada, a república violou esse compromisso. Os sobreviventes, desesperados, se renderam e ergueram a bandeira branca. No entanto, um último grupo de resistência se posicionou na praça central da cidade. Do lado de fora do arraial, os sobreviventes eram levados a um lugar onde homens, mulheres, crianças e idosos foram brutalmente assassinados em um dos maiores massacres perpetrados pela República do Brasil.

Estima-se que cerca de 25 mil pessoas foram assassinadas naquele dia, e a cidade inteira foi imersa em chamas e destruída. Mesmo com todos os esforços do exército brasileiro, a queda de Canudos demonstrou o quão difícil é derrotar um exército formado por indivíduos livres, que lutavam não apenas para expandir seu poder, mas para proteger suas famílias e seu território.

Organizações criadas pela livre iniciativa muitas vezes são movidas por ideais mais fortes do que um governo autoritário pode aniquilar. Para silenciar a resistência, o Estado não hesitou em usar força brutal contra uma população inocente. Isto serve como uma clara demonstração de até onde um regime autocrata é capaz de ir para não ser questionado.

Observe que este artigo não pretende defender os atos de Antônio Conselheiro enquanto governante de Belo Monte, mas oferecer uma perspectiva sobre como indivíduos em situação de extrema insatisfação se organizaram para buscar melhores condições através da livre associação. É inegável que a resposta do governo brasileiro foi violenta e orientada por interesses próprios, nunca pelos da população. E a história se repete, até os dias de hoje.

Uma figura de destaque nessa história toda, foi o escrito Euclides da Cunha. Enviado para documentar aquilo que acreditava ser a luta de “homens civilizados que representavam o progresso” na figura dos republicanos contra “bárbaros monarquistas que não conseguiam se desapegar do passado” na figura dos sertanejos, Euclides não foi capaz de negar o que viu com os próprios olhos. Um grupo de sertanejos cujo único crime cometido, havia sido encontrar uma forma de viver em uma espécie de Brasil alternativo.

Apesar de ser terrivelmente republicano, Euclides não conseguiu se manter neutro diante de tantas atrocidades, escrevendo um grande clássico da lietratura brasileira, onde narrou os eventos da guerra e expôs as atrocidades cometidas, mesmo sofrendo represálias por parte dos republicanos e militares.

REFLEXÃO e legado: A História de Canudos e Seus Desdobramentos

A Guerra de Canudos representa um dos capítulos mais sombrios e complexos da história do Brasil. O massacre de aproximadamente 25 mil pessoas e a destruição total da cidade não foram apenas a supressão de uma insurreição; foram a evidência de um Estado disposto a ir a extremos para garantir sua hegemonia, ignorando os anseios e necessidades básicas de sua população.

A resistência de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro, não era apenas uma luta pela sobrevivência, mas um grito desesperado por dignidade e justiça. A cidade, construída sob os princípios da autossuficiência e da cooperação comunitária, ofereceu uma alternativa ao descaso do governo republicano, que preferiu utilizar a força bruta em vez de buscar soluções para os problemas que alimentaram a crise.

A brutalidade das expedições militares e a destruição final de Canudos são testemunhos da falência do Estado em responder aos desafios com sensatez e compaixão. Em vez de enfrentar suas próprias falhas e buscar reformas, o governo preferiu esmagar a resistência e silenciar aqueles que ousaram questionar seu poder.

Já a figura de Euclides da Cunha, que, apesar de seu alinhamento com os ideais republicanos, não conseguiu ignorar a crueldade que testemunhou, é emblemática desse conflito. Seu trabalho, que documentou e expôs as atrocidades cometidas contra o povo de Canudos, serve como um lembrete poderoso das falhas do Estado e da importância de se questionar o poder estabelecido.

Este artigo, portanto, não é apenas um relato da Guerra de Canudos, mas um convite à reflexão sobre a natureza do governo e a relação entre governantes e governados. As lições aprendidas com este trágico evento continuam a ressoar na história brasileira, demonstrando que, em vez de perpetuar a violência e a repressão, é necessário buscar a justiça e o entendimento. A história de Canudos é uma prova de que, mesmo diante da adversidade, a luta por dignidade e liberdade é uma das mais nobres que se pode empreender, e um chamado para que, hoje e sempre, sejamos vigilantes e críticos em relação às ações de governos, sejam eles ditos democráticos ou não.


Thiago Carvalho

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.


Fontes

Vainfas,RONALDO; de Castro, SHEILA; Ferreira,JORGE; Dos Santos,GEORGINA. História Volume Único. 2°Edição: Editora Saraiva (2014)

Bastiat,FRÉDÉRIC. A Lei. 3°Edição: INSTITUTO LUDWIG VON MISES BRASIL(2010)

Rothbard,MURRAY. A Anatomia do Estado. Edição em Ebook INSTITUTO LUDWIG VON MISES BRASIL.

DA CUNHA, Euclides. Os Sertões. 33. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

COUTO E SILVA, Manuel C. do. A Guerra de Canudos. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1990.

ARANTES, Maria de Fátima. Canudos: As Vítimas de uma Guerra. 1. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2001.

SOUZA E SILVA, Antônio Carlos de. A Guerra de Canudos: A Conquista do Sertão. 1. ed. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2005.

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