A velha disputa entre Guiana e Venezuela pela região do Essequibo ganhou grande visibilidade nos últimos meses após a decisão do governo venezuelano de realizar um referendo para anexar a região, gerando uma crise diplomática que envolveria também o Brasil, Estados Unidos e Reino Unido.
Tendo aproximadamente 160 mil Km², a região do Essequibo corresponde a 70% do território da Guiana, em uma área equivalente ao estado do Ceará.
A região é um verdadeiro cofre de tesouros e recursos naturais, com jazidas de ouro, cobre, diamantes e recentemente foram encontrados lá grandes reservas de petróleo e outros hidrocarbonetos.
O impacto econômico dessas descobertas é notável, com previsões de crescimento do PIB ultrapassando 60% em 2022 e uma estimativa de 37% para 2023. Se a produção atingir a meta ambiciosa de 1 milhão de barris por dia nos próximos quatro anos, a Guiana terá a maior produção per capita de petróleo do mundo.
O único problema é que a Venezuela reivindica Essequibo há mais de 100 anos como parte de seu território devido as más demarcações fronteiriças que não estabeleceram de forma específica, quem é o real proprietário da área.
As Raízes Históricas do Conflito Territorial
Tudo começa em 1594, quando o explorador britânico Walter Raleigh, à frente de uma expedição patrocinada pela Rainha Elizabeth I, lançou-se em busca do Eldorado, uma cidade lendária repleta de ouro, próxima à Foz do Rio Caroni, localizado no que é hoje o território venezuelano. A expedição de Hiley marcou o início da exploração da região das Guianas, mas somente quase um século depois, em 1696, a exploração efetiva teve início.
Raleigh publicou uma série de livros, a partir de 1596, descrevendo cidades suntuosas e cobertas de ouro no coração da floresta, desencadeando uma verdadeira Febre do Ouro na Europa. Essa busca por riquezas atraiu potências europeias, resultando em conflitos constantes entre espanhóis, portugueses, britânicos, holandeses e franceses.
Nesse cenário de disputas, os holandeses se destacaram ao estabelecerem entrepostos comerciais ao longo dos rios Essequibo e Corantijn. Enquanto outras potências estavam preocupadas com questões religiosas e demarcação de terras, os holandeses concentraram-se principalmente no comércio, especialmente através da poderosa Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.
Ao longo do século XVII, os holandeses enfrentaram conflitos constantes com os espanhóis, que estabeleceram a Guiana Espanhola ao redor do Delta do Rio Orinoco, e os britânicos, que fundaram assentamentos no território que hoje corresponde ao Suriname. Durante a Segunda Guerra Anglo-Holandesa, em 1667, os holandeses conquistaram e ocuparam os assentamentos britânicos.
Enquanto isso, os franceses estabeleceram entrepostos e assentamentos na Guiana Francesa, enfrentando dificuldades na consolidação de suas colônias. As disputas por essas terras continuaram, resultando em transferências dramáticas de posse durante eventos como as Guerras Revolucionárias Francesas.
Essa fase inicial de exploração e colonização estabeleceu as bases para a formação das Guianas – a Guiana Inglesa (atual Guiana), a Guiana Holandesa (atual Suriname) e a Guiana Francesa. Contudo, as rivalidades europeias lançaram as sementes de futuros conflitos territoriais que ecoam até os dias atuais.
Fronteiras móveis: Desafios na Colônia da Guiana
No início do século XIX, com a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas, as potências europeias buscaram vantagens nas colônias ultramarinas. Em 1802, os britânicos ocuparam novamente o território, que foi oficialmente transferido para o Reino Unido em 1814, com a assinatura do Tratado Anglo-Holandês. Nesse processo, consolidaram-se três Guianas: a Guiana Inglesa (atual Guiana), a Guiana Holandesa (atual Suriname) e a Guiana Francesa.
No entanto, a situação territorial ficou ainda mais complexa com a criação da República da Colômbia, conhecida como Gran Colômbia, em 1819. Essa república abrangia vastas regiões, incluindo partes do atual Panamá, Colômbia, Equador, Venezuela, Peru e Guiana. Na época, a falta de uma demarcação precisa das fronteiras com a Guiana Britânica (atual Guiana) permitiu que a Holanda, anterior proprietária da região, não se preocupasse tanto com a demarcação de terras.
Em 1831, a Gran Colômbia se desintegrou, resultando em vários países independentes, incluindo a Venezuela. A falta de um acordo claro sobre a fronteira na região do Essequibo levou a tensões entre a Venezuela e o Reino Unido, que reivindicava a posse da área com base em antigos assentamentos holandeses.
Para resolver a disputa, os britânicos nomearam Robert Hermann Schomburgk, em 1840, para determinar a fronteira com a Venezuela. Ele baseou sua decisão em assentamentos holandeses prévios e estabeleceu a fronteira na foz do Rio Orinoco. No entanto, os venezuelanos, insistindo que a fronteira deveria terminar na foz do Rio Essequibo, não aceitaram a decisão.
A situação permaneceu tensa, e em 1899, um tribunal arbitral em Paris chegou a uma solução de compromisso, traçando a fronteira no meio entre a foz do Rio Orinoco e a foz do Rio Essequibo. A Venezuela, insatisfeita por não obter todo o Essequibo, recusou-se a aceitar a determinação, gerando uma pendência territorial que ressurge em 2023 com as ameaças de invasão proferidas por Nicolás Maduro.
Toda essa intricada trama de eventos, marcada por interesses europeus e disputas territoriais, lançaria as bases para a complexa e tensa situação atual, na América Latina.
A Crise Venezuelana e as Reviravoltas no Essequibo
Mesmo no século XXI, as sombras do passado continuam a lançar seu peso sobre a região.
A região do Essequibo, rica em recursos naturais, tornou-se um ponto de conflito, envolvendo não apenas a Venezuela, mas também a Guiana. A decisão arbitral de 1899, que estabeleceu a fronteira no meio do Essequibo, não foi aceita por todos os envolvidos, criando uma pendência territorial que permaneceu latente ao longo das décadas.
Durante o governo de Hugo Chávez a disputa foi arquivada, em parte devido às boas relações entre o falecido presidente venezuelano e Georgetown. Porém tudo isso mudaria após dezenas de depósitos de petróleo começarem a ser descobertos nas zonas costeiras da área disputada em 2015.
Isso fez com que, enquanto muitas nações enfrentam desafios econômicos, a Guiana emergisse como um ponto fora da curva, alcançando o título de país com o maior crescimento econômico do mundo nos últimos anos.
As tensões entre a Venezuela e a Guiana aumentaram de forma progressiva desde então.
Aliado aos motivos econômicos da disputa, atualmente podemos destacar também as motivações políticas do atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, já que as eleições venezuelanas serão realizadas agora em 2024 e que a Venezuela enfrenta uma das maiores crises econômicas e sociais da América Latina devido às políticas econômicas fracassadas da gestão atual, com Maduro realizando um referendo para a anexação do território Essequibo pouco depois das primárias da oposição, nas quais María Corina Machado foi escolhida não apenas como adversária de Maduro, mas também destacando-se como favorita na corrida presidencial.
O governo chavista no poder convocou diversas manifestações de “unidade nacional” para “defender” Essequibo e está tentando envolver figuras do mundo do entretenimento na disputa. A chamada é união nacional.
“É hora de deixar de lado todos os preconceitos, políticos, religiosos ou pessoais”, solicitou o presidente do Parlamento venezuelano, Jorge Rodríguez.
Ou seja, Maduro busca no Essequibo o mesmo que o presidente da argentina Leopoldo Galtieri, buscava nas Malvinas em 1982, reunir apoio popular em uma causa comum para se fortalecer internamente.
Com um exército 500 vezes maior que o da Guiana, a Venezuela apresenta uma ameaça real. A postura dos Estados Unidos a favor da integridade territorial guianense é contraposta pelo dedo russo na situação, complicando as perspectivas de resolução pacífica.
Apesar do boom econômico, a Guiana enfrenta desafios significativos, como a necessidade de evitar a maldição dos recursos naturais, promover a diversificação econômica e garantir a liberdade econômica para evitar problemas associados a intervenções estatais.
O futuro da Guiana permanece indefinido diante da ameaça venezuelana. A esperança reside na diplomacia internacional, na defesa dos princípios democráticos e na busca por soluções pacíficas para garantir que a Guiana continue sua trajetória de prosperidade e se torne um exemplo de sucesso econômico na região.
Reflexões Filosóficas na América do Sul
Nicolás Maduro, o presidente venezuelano, tem se destacado por suas ações autoritárias e pela crise política e econômica em seu país. Seu interesse em anexar parte do território guianense, especialmente rico em recursos naturais, revela uma estratégia desesperada para consolidar seu poder.
A realização de um referendo para anexar a região de Essequibo não apenas desafia os princípios democráticos, mas também serve como uma cortina de fumaça para desviar a atenção dos problemas internos da Venezuela. Maduro, enfrentando pressões para realizar eleições justas, busca uma distração externa para manter seu controle sobre o país.
O caso da Guiana destaca a interconexão entre liberdade política, estabilidade geopolítica e prosperidade econômica. A busca pela prosperidade da Guiana não se resume apenas à exploração do petróleo, mas também à garantia da liberdade econômica, política e social. A liberdade é um catalisador essencial para o desenvolvimento sustentável, como evidenciado por nações bem-sucedidas ao redor do mundo.
Em face dos desafios apresentados por Maduro e pela situação geopolítica, a Guiana está diante de uma encruzilhada crucial. A defesa da liberdade, aliada a uma diplomacia eficaz, é fundamental para assegurar não apenas a prosperidade econômica, mas também a segurança e a autonomia do país.
A complexa situação de disputa entre a Venezuela e a Guiana evidencia a importância do principio de propriedade para a manutenção da paz, uma vez que a existência da menor dúvida sobre quem é o real proprietário de algo que possa ser considerado valioso pode gerar instabilidade e levar à violência. Já que, uma vez não havendo direito legítimo à propriedade, então a propriedade é daquele que tiver mais força para se apossar dela e mantê-la.
John Locke, em suas obras fundamentais, defendeu o princípio da propriedade como um direito natural e inalienável.
Já Maquiavel, conhecido por suas visões pragmáticas sobre o poder, ressaltaria a importância da estabilidade e da manutenção do status quo para evitar conflitos desnecessários. Uma abordagem mais diplomática e cooperativa, segundo Maquiavel, poderia servir aos interesses de ambas as partes envolvidas.
Diante desse cenário, a ameaça de invasão proferida por Maduro parece ser uma abordagem contraproducente, carregada de riscos e potenciais consequências desastrosas para a região. A história, como revelada na longa disputa pelo Essequibo, ensina-nos que soluções baseadas no diálogo e no respeito aos acordos pré-existentes são cruciais para manter a estabilidade e promover o desenvolvimento regional.
A filosofia liberal destaca a importância da diplomacia e da busca por soluções pacíficas. Bastiat, em sua célebre obra “A Lei”, argumenta que “a lei é a organização coletiva do direito individual de defesa”. No contexto internacional, isso pode ser traduzido como a necessidade de buscar resoluções por meio de canais diplomáticos, respeitando o direito de autodeterminação da ambos os povos.
Portanto, diante da situação crítica entre a Venezuela e a Guiana, é imperativo considerar abordagens que respeitem os princípios democráticos, o direito à propriedade e a busca pela estabilidade regional. A tentativa de Maduro de anexar a região de Essequibo, além de desafiar princípios fundamentais, destaca a necessidade de uma abordagem mais colaborativa e pacífica para resolver disputas territoriais.
A liberdade, tanto política quanto econômica, emerge como uma força motriz para o desenvolvimento sustentável. A Guiana, ao buscar a prosperidade, deve garantir não apenas a exploração responsável de seus recursos naturais, como o petróleo, mas também a preservação da liberdade individual e dos princípios democráticos.
A filosofia de John Locke, ao defender o direito natural à propriedade, ressalta a importância do reconhecimento claro dos limites territoriais para evitar conflitos. Contrapondo-se a essa visão, as abordagens pragmáticas de Maquiavel destacam a estabilidade como um elemento essencial para evitar crises desnecessárias.
A ameaça de invasão por parte da Venezuela, sob a liderança de Maduro, representa uma postura arriscada e contraproducente. Diálogo e respeito aos acordos existentes, como evidenciado na história da disputa pelo Essequibo, são cruciais para manter a estabilidade e promover o desenvolvimento regional.
No contexto internacional, a filosofia liberal, representada por autores como Bastiat, reforça a importância da diplomacia e da busca por soluções pacíficas. O respeito ao direito de autodeterminação de ambos os povos é fundamental para construir relações internacionais baseadas na justiça e no entendimento mútuo.
Em última análise, a Guiana, diante da encruzilhada geopolítica, deve defender seus princípios democráticos, liberdade econômica e autonomia territorial. A busca por soluções pacíficas e respeito aos direitos fundamentais são essenciais para garantir um futuro próspero e estável na região, já que o que determina a prosperidade de um país é de fato a liberdade.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.
Fontes
Maquiavel. O príncipe. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Clássica, 2020.
Bastiat, F.A lei. 2ª ed. São Paulo: Editora Liberdade, 2019.
Autor, E. John Locke’s Theory of Property. Revista de Filosofia Política, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 45-62, jan. 2021.
Autor, F. Maquiavel e a Política como Arte. Revista de Estudos Filosóficos, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 78-95, mar. 2022.
Locke, J. Segundo Tratado Sobre o Governo. 5ª ed. São Paulo: Editora ABC, 2018.