O Capitalismo e a Prova do ENEM 2023

O Capitalismo e a prova do ENEM 2023

Se você clicou no link deste artigo esperando encontrar um texto cheio de termos econômicos, gráficos detalhados e uma análise profunda da lei da oferta e demanda, é melhor preparar-se para uma experiência diferente. Este texto não segue por essa linha.

O propósito deste artigo é explorar reflexões da Ayn Rand – escritora e filósofa nascida na Rússia e posteriormente naturalizada nos Estados Unidos, notória por sua criação do sistema filosófico chamado Objetivismo –, especialmente sobre a essência da natureza humana. Mais especificamente, minha intenção é investigar e integrar conceitos1  em um contexto específico: o suposto conflito de interesses entre o agronegócio e os camponeses, apresentado na tão falada questão 89 do caderno branco da prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias do ENEM 2023.

À medida que você lê este artigo, convido-o a refletir sobre as informações que compartilho, as analisando criticamente através da lógica2. Isso é crucial para um melhor discernimento entre o verdadeiro e o fictício. Afinal, qualquer um pode afirmar que a lua é feita de queijo, que a terra é plana ou que o capitalismo está associado à exploração e à violência.

A famosa questão 89 do ENEM 2023

Vamos aos fatos: em 5 de novembro de 2023, candidatos de todo o país receberam o caderno de provas do ENEM, que incluía questões de ciências humanas, linguagens e redação. Na prova de ciências humanas (caderno branco), a famosa questão 89 estava lá, gerando toda a discussão. Segue sua transcrição:

“No Cerrado, o conhecimento local está sendo cada vez mais subordinado à lógica do agronegócio. De um lado, o capital impõe os conhecimentos biotecnológicos, como mecanismo de universalização de práticas agrícolas e de novas tecnologias, e de outro, o modelo capitalista subordina homens e mulheres à lógica do mercado. Assim, as águas, as sementes, os minerais, as terras (bens comuns) tornam-se propriedade privada. Além do mais, há outros fatores negativos, como a mecanização pesada, a “pragatização” dos seres humanos e não humanos, a violência simbólica, a superexploração, as chuvas de veneno e a violência contra a pessoa”. 

Os elementos descritos no texto, a respeito territorialização da produção, demonstram que há um

a) cerco aos camponeses, inviabilizando a manutenção das condições para a vida. 

b) descaso aos latifundiários, impactando a plantação de alimentos para a exportação. 

c) desprezo ao assalariado, afetando o engajamento dos sindicatos para com o trabalhador. 

d) desrespeito aos governantes, comprometendo a criação de empregos para o lavrador. 

e) assédio ao empresariado, dificultando o investimento de maquinários para a produção. (ENEM, 2023)

São tantos termos vagos na questão, que a torna quase que irracional. O autor da questão menciona frases como “lógica do agronegócio” (que lógica?), “capital impõe os conhecimentos” (o que é o capital? Conhecimentos podem ser impostos? De que forma a aplicação da biotecnologia no Cerrado ocorreu efetivamente?), “universalização de práticas agrícolas” (achei dramático… capitalistas malvadões também aspirando práticas agrícolas em marte?), “o modelo capitalista” (afinal, o que é o capitalismo?). Ainda, ele cita termos como: “pragatização dos seres humanos” (?), “violência simbólica” (símbolo do quê?), “superexploração” (de quê? De quem?), “chuvas de veneno” (já chegamos na era apocalíptica?), e assim, relacionando-os como elementos negativos inerentes ao sistema capitalista. Ele também caracteriza a água, sementes, minerais e terras como “bens comuns”, mas sem uma justificativa clara disso.

Mas a pergunta mais importante a ser respondida deve ser: o que é capitalismo? Esse será o tópico principal do artigo, pois o autor não nos dá essa resposta de forma objetiva em seu texto e,  talvez, tenha sido esse um erro fundamental. Ao invés disso, temos um conceito abstrato e subjetivo do que se trata: um modelo que subordina homens e mulheres à lógica de mercado, lógica esta que resulta na superexploração, chuvas de veneno e a violência contra a pessoa.

À título de curiosidade, em “A nascente”, Ayn Rand nos oferece uma visão intrigante de como as abstrações se manifestam nas mentes coletivistas. Um trecho marcante é a experiência de Keating ao mergulhar no abstrato enquanto lia o Livro de Lois Cook:

“Keating inclinou-se para trás com uma sensação de calor e bem-estar. Gostava desse livro, que transformara a rotina de seu café da manhã de domingo em uma profunda experiência espiritual. Peter tinha certeza de que era profunda, porque não entendia nada. Ele nunca sentira necessidade de formular convicções abstratas. Porém tinha um substituto que funcionava. “Uma coisa não é alta se pudermos alcançá-la; não é grande se pudermos raciocinar sobre ela; não é profunda se pudermos ver seu fundo” – essa sempre fora sua crença, não declarada e não questionada. Isso o poupava de qualquer tentativa de alcançar, raciocinar ou ver, e lançava um reflexo agradável de desprezo naqueles que faziam a tentativa. Portanto, ele era capaz de apreciar o trabalho de Lois Cook. Sentia-se elevado pelo conhecimento de sua própria capacidade de reagir ao abstrato, ao profundo, ao ideal.” (Rand, Ayn. A nascente)

E assim, a armadilha está formada: o trecho acima sugere que a abstração na mente de um coletivista muitas vezes é vinculada inconscientemente a um estado de transcendência, espiritualidade e superioridade, ao passo que seduz pela facilidade com que se pode acessá-la. Basta contemplar, sentir, se envolver. Não há necessidade de esforço mental, isto é, de qualquer pensamento. Isso pode explicar por que discursos calorosos e vagos têm o poder de cativar, convidando inconscientemente as pessoas a se envolverem emocionalmente, sem a necessidade de pensamento crítico ou esforço intelectual.

Mas, retornando ao nosso tópico, para explorarmos o conceito de capitalismo é importante discutir algumas premissas equivocadas que muitas vezes são assumidas como certas pela maioria das pessoas. Estes temas podem ser verificados com mais profundidade no livro: “A virtude do egoísmo” de Ayn Rand. Optei por trazê-las à tona por alguns motivos: a) primariamente, por me demandar pensamento sobre o assunto; b) por acreditar que muitos leitores podem se identificar ou conhecer pessoas que compartilham dessas mesmas premissas/perspectivas filosóficas, o que lhes auxiliará nas suas próprias integrações mentais; c) por contribuir na análise da questão 89 do ENEM 2023 e na conceitualização de capitalismo da Rand e; d) por ser um tema pouco explorado no meio liberal, mas que no entendimento da Rand, torna impossível a implementação do sistema capitalista na sua versão pura (sem intervenção estatal). Isto é, o capitalismo laissez-faire. Por fim, deixo uma única sugestão ao leitor quanto ao que pode ser feito em prol do Capitalismo.

Ética das emergências

A primeira premissa para a qual quero chamar atenção do leitor, é a perspectiva malevolente da natureza humana. Veja se alguma dessas expressões lhe soa familiar: “a vida é amarga, é sofrimento.”, “em uma selva, na disputa por uma única maçã, você sempre irá agir visando a sua própria sobrevivência, em detrimento do outro.”, “no contexto dos negócios, é cobra engolindo cobra.”, “o que você faria se você e outro homem estivessem em um bote salva-vidas que pode carregar apenas um?”. Ou ainda: “todo grande empresário só o é, por que em algum momento da sua trajetória ele teve de ser imoral.”

Essa perspectiva é uma variante da ética altruísta. Lembrando que, segundo Rand, em “A virtude do egoísmo”:

“A ética do altruísmo criou a imagem do brutamontes…, de modo a fazer os homens aceitarem dois princípios desumanos: a) que qualquer preocupação com seus próprios interesses é maligna, não importando quais sejam esses interesses e b) que as ações do brutamontes são, na verdade, para seu próprio interesse (que o altruísmo ordena que o homem renuncie pelo bem dos outros).” (Rand, Ayn. A virtude do egoísmo)

Ou seja, a ética altruísta propõe uma falsa dicotomia: o indivíduo se sacrifica agindo em prol dos outros, ou é rotulado como um brutamontes egoísta que age exclusivamente em benefício próprio, às custas dos outros.

Essa variante ética3, categorizada por Ayn Rand como a ética das emergências, pressupõe que a moralidade4 só é concebível sob a ótica de um mundo caótico, onde tanto a natureza quanto os seres humanos são inerentemente malignos. No entanto, a realidade é diferente: os seres humanos não vivem constantemente em um estado de caos. Na maior parte do tempo, vivemos em condições normais e estáveis. Basta observar as fortunas feitas pelas seguradoras para constatar essa evidência.

Essa reflexão levanta uma questão instigante: se a moralidade de um indivíduo só é considerada em situações extremas, então, onde está sua moralidade durante a maior parte de sua vida, quando não há emergências?

Frequentemente os indivíduos adeptos dessa perspectiva filosófica5, além de amorais6, (note a similaridade com o estoicismo, que também parte de uma premissa cruel e injusta da realidade, e que por isso, cabe ao indivíduo desenvolver uma postura antifrágil7 diante da vida) não tem autoestima, pois eles acreditam ser corrompidos em essência, e que não faz sentido buscar valores8, pois estes serão destruídos a qualquer momento. São pessoas pessimistas com relação a vida. “A lei de Murphy não falha”, dizem elas. Não pensam a longo prazo, dado a instabilidade e o caos das coisas. São fazedoras e não planejadoras. Mantém uma perspectiva de curto prazo, pois qualquer planejamento é inútil. Costumam achar que não vão conseguir alcançar qualquer valor no longo prazo. Um exemplo disso é aquele seu tio que diz não querer aprender inglês por já ter tentado diversas vezes, mas que na verdade nunca teve a consistência necessária de anos de estudos. O pior, é que muitos deles, por acreditarem que não vão conseguir alcançar valores, é natural recorrerem a soluções torpes de curto prazo. 

Um outro indicativo dessa perspectiva filosófica é a falta de respeito para com os outros, já que considera a humanidade a escória de tudo o que há na natureza, mendigos condenados, implorando pela ajuda de alguém. Ex.: Lembre-se da sua tia que prefere os gatos às pessoas ou da sua prima socialista que dedica uma vida inteira à assistência social. Leia-se Katie, de “A Nascente” (novamente, trata-se apenas de um indicativo. O contexto é relevante como veremos a diante). A prepotência e a humildade são duas faces da mesma moeda.

Os “conflitos” de interesse entre os homens

Durante um evento em defesa da liberdade, fui confrontado com uma pergunta intrigante: “Imagine dois candidatos competindo por uma vaga de emprego, mas apenas um será selecionado. Isso não resulta em um conflito de interesses, em que o ganho de um é à custa da perda do outro?” Coincidentemente, essa mesma questão é abordada por Ayn Rand no capítulo 4 de “A virtude do egoísmo”.

Essa discussão surgiu em meio a um café com um colega “liberal”. Explorávamos o nível apropriado de intervenção do Estado na economia a curto prazo. Sua visão era de que, diante de situações como a mencionada, caberia ao Estado intervir, especialmente em favor dos mais vulneráveis, que poderiam ter sido privados de oportunidades comparadas àqueles mais favorecidos.

Em síntese, discordamos nesse aspecto. Na época, minha resposta à pergunta foi não, me fundamentado basicamente na capacidade criativa dos indivíduos de resolverem seus próprios problemas e pelo fato de a cobrança de impostos ser moralmente errada, independente dos fins (considerando o atual contexto de financiamento do Estado); de que para uns ganharem, outros não precisam perder.

Mas Rand vai além, diz que para responder essa pergunta há quatro considerações que são ignoradas e que precisamos avaliar: a realidade, contexto, responsabilidade e esforço.

A realidade

No que tange à realidade, quero comentar sobre a segunda premissa para a qual gostaria de apresentar ao leitor. Trata-se também de uma variante da ética altruísta: a perspectiva hedonista, ou subjetivismo. Permita-me detalhar melhor sobre essa perspectiva.

Enquanto o objetivismo defende a felicidade como o propósito moral fundamental para todos os seres humanos, os hedonistas a utilizam como um critério de partida para discernir o que é bom ou ruim. Essa abordagem carece de clareza quanto ao verdadeiro significado da felicidade. De acordo com o objetivismo, a felicidade é um estado duradouro de consciência proveniente da conquista de valores próprios, não se restringindo a momentos fugazes de euforia. Pessoas na cracolândia, por exemplo, não estão em um estado de felicidade, mas de euforia. Para os hedonistas, algo é considerado bom desde que um desejo pessoal, independentemente dos fatos da realidade, seja satisfeito. Essa abordagem subjetiva explica, em parte, a confusão ética atual, pois baseia-se em desejos individuais e voláteis.

Consequentemente, surgem conflitos éticos, já que o padrão de valor é determinado por desejos, caprichos e vontades infundadas dos indivíduos. Segundo Rand, sob essa perspectiva, o desejo de um ladrão de roubar um carro é equiparado ao desejo do proprietário de não ser roubado, criando um conflito de interesses evidente. Essa premissa gera também conflitos internos no indivíduo, onde seus próprios valores entram em contradição, justificando, em parte, casos de depressão e ansiedade. Viktor Frankl, em seu livro “Em busca de sentido”, discute essa questão ao ilustrar alguém tentando pegar uma bola que flutua em uma piscina: quanto mais a pessoa tenta alcançá-la diretamente, mais a bola parece escapar de suas mãos. O cerne da questão está no conceito de felicidade. Os hedonistas, carentes dessa clareza, buscam-na como objetivo primário, gerando conflitos e contradições internas.

À título de curiosidade, um indicativo dessa perspectiva filosófica, são aquelas pessoas que repetem frases como: “só se vive uma vez!”, “os três prazeres da vida são: comida, dinheiro e sexo.”, “por que se preocupar tanto com o amanhã, se o amanhã é incerto?” “não fui com a cara do fulano.” Ou “quero que faça isso porque estou mandando.” 

Olha só, pense no Pedro, aquele amigo que sonha em passar para medicina na Universidade “X”, mas parece que só fica na vontade. Ele não se dedica muito (ou quase nada) para realizar esse sonho. Ao mesmo tempo, quer passar horas e horas assistindo Netflix, além de curtir as festas do sábado à noite com a galera. Equilíbrio é tudo, diz ele. Pedro é um verdadeiro hedonista, ignorando completamente os fatos da realidade. Passar em um curso como esse exige treino, tempo e dedicação. E, diferente do que o Primo Rico costuma dizer, não se trata de um sacrifício a ser feito (aliás, desconfie dessas afirmações). Seguindo o que Rand explica no Capítulo 3 de “A virtude do egoísmo”: Sacrifício é renunciar a algo de maior valor por algo menor ou sem valor. Agora, pense comigo, será que para o Pedro, passar em medicina é menos valioso do que suas festas e tempo na Netflix? E mais, será que ele realmente sabe o que quer da vida?

Pedro tende a considerar suas emoções como a principal fonte de conhecimento, mas raiva, alegria ou tristeza não nos dizem nada sobre o funcionamento do mundo; o que é certo ou errado. Isso não quer dizer que os sentimentos sejam irrelevantes (interessante notar que já me disseram que quem prioriza apenas a razão é um psicopata – mais um desses conflitos comuns. Um psicopata é irracional). Pelo contrário, é totalmente racional entender o que suas emoções têm a dizer sobre você, por meio de um processo de introspecção. Na verdade, a definição de razão é: razão é a faculdade (referente à capacidade) que identifica e integra o material fornecido pelos sentidos do homem. Ou seja , não há conflito entre razão e emoção.

Para fins pedagógicos, seria útil traçar um paralelo entre essas duas vertentes da ética altruísta-coletivista: enquanto a primeira se refere às pessoas extremamente pessimistas, a segunda trata daquelas incrivelmente otimistas, que chegam ao ponto de ignorar os fatos da realidade. Mas o ponto é que a maioria das pessoas transitam entre essas duas abordagens, que são peculiaridades de uma mesma perspectiva, o altruísmo.

O contexto

Outro aspecto interessante para avaliar é a tendência das pessoas em desconsiderar o contexto. Ayn Rand sugere que essa é uma maneira comum pela qual as pessoas se esquivam de pensar sobre determinada situação. O contexto, de acordo com Rand, é todo o conhecimento que um indivíduo possui sobre os fatos da realidade em relação a uma situação específica. Embora esse conhecimento varie entre as pessoas, é importante diferenciar isso do subjetivismo, já que enquanto o primeiro se baseia nos fatos da realidade, o segundo não o faz.

Ao falar de contexto, Rand destaca que o homem racional sabe que é da sua natureza não desejar o imerecido, pois qualquer valor que ele possa obter só é possível através da sua própria mente, isto é, do seu próprio esforço. Ninguém pode pensar por ele e, portanto, se esforçar por ele. Pense no atleta olímpico: o treinador pode orientá-lo, mas é o atleta que deve pensar sobre; treinar e desenvolver suas habilidades. Mesmo que o treinador passe as diretrizes, ainda é responsabilidade do atleta performar. Para ficar mais claro, pense em uma sala de aula: diferentes alunos absorvem o conteúdo de maneiras distintas, pois refletir sobre o que foi ensinado é fundamental. Uma outra forma de ver a questão é: ninguém pode pensar pelos outros, já que todos têm livre-arbítrio e assim, experiências e conhecimentos únicos, que elas escolheram para si. É como se cada pessoa carregasse uma mochila cheia de aprendizados e experiências diferentes. Por exemplo, se pedirmos a um agricultor e a um astronauta para descreverem o que lhes vem à mente quando ouvem a palavra “terra”, suas interpretações certamente seriam distintas. É como se estivessem vendo paisagens completamente diferentes. E assim, sugerir que um pense pelo outro é um absurdo.

Rand aborda ainda a questão da responsabilidade como um aspecto particular do abandono de contexto. Ela oferece um exemplo ilustrativo: certa vez, um arquiteto europeu lhe expressou sua indignação com as condições habitacionais precárias em Porto Rico após uma visita a uma cidade. Em seguida, compartilhou um sonho detalhado de como os porto-riquenhos poderiam viver melhor, com moradias modernas e sofisticadas. Contudo, quando questionado sobre quem pagaria por isso, ele respondeu: “Oh, isso não é algo com que eu deva me preocupar! A tarefa de um arquiteto é apenas projetar o que deveria ser feito. Deixe outra pessoa se preocupar com o dinheiro.” Essa postura lhe parece familiar?

Esse é mais um exemplo de uma perspectiva hedonista ou ética subjetivista. Nessa visão, o que importa é apenas o que o indivíduo deseja, ignorando o ambiente ao seu redor. Ao se eximir da responsabilidade de considerar o contexto, afirma que a questão será resolvida “de algum jeito”. Essa atitude revela uma confissão psicológica de humildade, pois quem é ele para julgar o mundo ao seu redor? Mas ao mesmo tempo, evidencia sua arrogância. A expressão “de algum jeito” sempre implica em “alguém”. Não importa quem será esse alguém, o que importa é que alguém deverá satisfazer seus caprichos irracionais.

O esforço

Antes de abordarmos o último ponto, referente ao esforço, vale a pena darmos uma olhada no Capítulo 1 de “A virtude do egoísmo”. Nesse capítulo, ela compara a natureza humana com a animal e vegetal. Simplificando, enquanto as plantas possuem uma forma automática para adquirir valores através dos seus sentidos – como reconhecer o solo fértil, nutrientes, água e luz como vitais para sua sobrevivência (em alguns casos, suas folhas se projetam para o lado de maior incidência solar, buscando vida) -, os animais têm um nível de consciência mais elevado. Eles conseguem integrar e reter informações dos sentidos, agindo principalmente por instinto para preservação da espécie. Já o ser humano não possui um código automático de valores; seus sentidos não indicam automaticamente o que é vital para sua sobrevivência. Na visão objetivista, os seres humanos não têm instintos, mas sim impulsos (ou emoções) que foram automatizados consciente ou inconscientemente – ou seja, são produtos ou consequências de ideias, não o condutor. Cabe ao indivíduo escolher conscientemente (através de um processo de pensamento) automatizar suas emoções ou não. A primeira opção demanda esforço, enquanto a segunda não. Qual é o resultado de se optar pela 1º opção? Autoestima, que é o reconhecimento pessoal do indivíduo ao interpretar adequadamente as leis naturais que regem a realidade. Já o resultado de se optar pela 2º opção, segundo Rand, é, em casos extremos, o suicídio, ou seja, a falta de autoestima.

Assim, o homem racional reconhece que o valor que almeja conquistar só pode ser obtido através do seu esforço, principalmente o esforço mental. Compreende que nenhum bem lhe foi dado, exceto o que sua natureza humana lhe proporcionou: a razão. Porém, ele também está ciente de que a razão não garante automaticamente o sucesso. Ele compreende que a riqueza e os bens não são estáticos; eles precisam ser criados, não simplesmente divididos. Apenas os indivíduos “humildes” acreditam nessa falsa dicotomia, e ressentem-se com o sucesso alheio, acreditando que o ganho de uns implica necessariamente na perda de outros.

Síntese

Finalmente, temos a resposta apropriada à pergunta do colega. 

Conforme Rand afirma, a resposta é não, pois:

a) Realidade – A questão dos interesses por si só não é determinante. É fundamental analisar se esses interesses são válidos ou se estão baseados em pressupostos equivocados sobre a realidade. Ou seja, é preciso avaliar se ambos os candidatos estão genuinamente interessados na vaga por razões racionais e qualificados para ocupá-la, ou se estão agindo de acordo com perspectivas puramente hedonistas. Muitas vezes, o que desejamos não corresponde ao que de fato é benéfico e moral para nós.

b) Contexto – a pergunta não leva em consideração o contexto da situação. Numa economia mista, como a que vivemos por exemplo, ainda há competição, e isso é benéfico para ambos os candidatos. A outra alternativa, seria o estado definir seus trabalhos, o que caracterizaria um totalitarismo, o que não é de interesse de um indivíduo racional.

c) Responsabilidade – nenhum dos candidatos tem o direito moral de se abster de avaliar os pontos anteriores. A simples declaração de querer um emprego não anula a necessidade de considerar esses aspectos.

d) Esforço – é crucial reconhecer que o indivíduo selecionado foi escolhido com base em seu próprio esforço e mérito (levando em conta a racionalidade daquele que o contratou). Portanto, não seria apropriado falar em sacrifício por parte daquele que não foi escolhido, já que esse candidato não possuía a vaga em primeiro lugar. Não faz sentido falar em sacrifício por algo que nunca foi adquirido.

Lançado as bases do raciocínio, voltemos ao tópico inicial, isto é, ao conceito de capitalismo.

O que é o capitalismo?

Rand, em “Capitalismo: O ideal desconhecido”, esclarece:

“Uma vez que o conhecimento, o pensamento e a ação racional são propriedades do indivíduo; uma vez que a escolha de exercer ou não a sua faculdade racional depende do indivíduo, a sobrevivência do homem exige que quem pense esteja livre da interferência daqueles que não pensam. Uma vez que os homens não são nem oniscientes nem infalíveis, eles precisam da liberdade para concordar ou discordar, cooperar ou perseguir seus próprios caminhos independentes, cada um de acordo com seu próprio julgamento racional. A liberdade é a exigência fundamental da mente do homem.” (Rand, Ayn. Capitalismo: O ideal desconhecido)

Ainda, nas suas próprias palavras:

“O reconhecimento social da natureza racional do homem — da conexão entre sua sobrevivência e seu uso de raciocínio — é o conceito de direitos individuais.” (Rand, Ayn. Capitalismo: O ideal desconhecido)

Segundo Rand em a virtude do egoísmo, Direitos são um conceito moral que fornece a transição lógica entre o princípio ético que guia as escolhas e a vida do homem para o princípio ético que guia sua relação com o outros homens em um contexto social; É um conceito que promove e garante a moralidade individual em um contexto social; É a ligação entre o código moral de um homem e o código jurídico de uma sociedade; É um princípio moral que define e sanciona a liberdade de ação do homem em um contexto social.

Nesse contexto, ela argumenta que os direitos devem ser exclusivamente individuais, pois é inerente à natureza humana conquistar por meio dos seus próprios esforços. Seja em termos materiais ou morais, os valores não são adquiridos de maneira automática. A vida é um processo de autossustentação contínua. Não existem direitos à moradia, emprego ou consumo, tampouco para aqueles que ainda não nasceram, já que todos eles pressupõem um provedor. Não há conciliação entre os direitos de escravizar uma minoria e os direitos individuais. É uma escolha entre um ou outro. Assim como a inflação monetária desvaloriza a moeda, a inflação de direitos reduz o valor dos direitos individuais.

E finalmente, segue a definição objetiva de capitalismo:

“O capitalismo é um sistema social baseado no reconhecimento de direitos individuais, incluindo o direto à propriedade, no qual toda propriedade é uma posse privada.” (Rand, Ayn. Capitalismo: O ideal desconhecido)

Análise da questão 89 sob uma ótica objetivista

Quanto à questão 89 do ENEM, os autores utilizaram termos como “superexploração”, “chuvas de veneno”, “violência contra a pessoa” … e os qualificou como fatores negativos do modelo capitalista. São todos termos que representam uma perspectiva malevolente da realidade, descrita por Rand como característico da ética das emergências. Ou seja, o mundo é um caos completo: há “superexploração”, “chuvas de veneno” e “violência contra a pessoa”, em que de um lado, existem os sádicos empresários, e do outro, os miseráveis coitados, implorando pela própria sobrevivência.

Depois, ao mencionar águas, sementes, minerais e terras como “bens comuns” sem uma explicação clara, isso sugere automaticamente a ideia de posse coletiva, uma visão estática que implica: “é meu, é seu, é nosso… apenas porque sim!” A arrogância se encontra no desejo imerecido por esses recursos, típico de uma visão subjetivista da realidade.

Segundo o gabarito, a alternativa correta é a letra a). Esta alternativa em conjunto com a questão, evidencia um suposto conflito de interesses entre os empresários do agronegócio e os camponeses. Agora, observemos de que forma os autor da pergunta ignora ou se opõe às quatro considerações mencionadas pela Rand no que diz respeito aos “conflitos” de interesses entre os homens.

a) Realidade – o simples fato de que houve a aplicação de biotecnologia no Cerrado brasileiro não nos diz quais foram suas reais causas e como isso prejudica (ou não) os interesses dos camponeses.

b) Contexto – o autor da questão deveria saber que não existe capitalismo no Brasil, mas sim um sistema de economia mista e que, justamente por isso, o processo de transformação do Cerrado brasileiro se deu primariamente por meio de investimentos públicos em pesquisas que possibilitaram a mecanização agrícola do Cerrado, especialmente com a criação da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) – criada em 1973, durante o governo de Ernesto Geisel. Infelizmente, às custas de vários brasileiros. Nesse sentido, cito Rand novamente:

“A ciência é desejável? Para quem? Não para a mãe que perdeu seu filho porque não teve recursos para interná-lo no melhor hospital – nem para nenhuma das pessoas cujos tributos financiam nossa ciência subsidiada e os projetos públicos de pesquisa.” (Rand, Ayn. A virtude do egoísmo)

c) Responsabilidade – o autor não tem o direito moral de dizer que o intuito da questão foi apenas avaliar a capacidade de interpretação dos candidatos, dado a relevância do ENEM e visto que a questão foi inserida na prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias, cujo o propósito das perguntas é justamente a análise da realidade. De outro modo, deveria ter sido questionada em Linguagens, Código e suas Tecnologias. 

d) Esforço – em uma sociedade capitalista não há garantias de sucesso, apenas o direito de obtê-lo por seus próprios esforços (supondo que os camponeses tenham sido prejudicados por conta de uma empresa agrícola em específico). “Em uma sociedade livre, ninguém tem de lidar com os que são irracionais. Um indivíduo é livre para evita-los.” (Rand, Ayn. A virtude do egoísmo).

Definitivamente, eu marcaria a letra e)!

Conclusão

Ok, mas como Rand propõe uma vida moral? Em síntese: concentre-se em você mesmo. Sim, é isso mesmo. O conselho é direto: concentre-se na sua própria existência. A ética altruísta-coletivista se revela de uma maneira específica nas pessoas: dependência dos outros. Explico: elas buscam o discernimento do que é verdade ou não nos outros, suas energias dependem deles, sua valorização, prestígio, e até mesmo para que possam impor suas visões de mundo. Perdem tempo debatendo com o tio comunista sobre os benefícios do capitalismo, sem perceber que o capitalismo é, na verdade, uma consequência da ética individual (o foco não está em si mesmas, mas em convencer os outros). Isso difere de um eremita (recomendo a leitura do meu artigo no Damas sobre independência, segundo Rand). Eu, que sou formado em engenharia civil, obviamente dependo dos conhecimentos de um médico. Nesse contexto, o contrário de independência é second-handedness (e não dependência). Rand é contra second-handedness.

Apesar do contexto social adverso, não estamos em uma ditadura comunista. Você ainda tem a liberdade para aprender, se desenvolver e extrair o máximo da vida.

Para ilustrar o estilo de vida ao qual me refiro, finalizo trazendo à tona um trecho de “A nascente”, obra em que Rand sugere um padrão de vida que se alinha com essa sugestão. 

“Os apartamentos da Residência Enright foram alugados imediatamente. Os inquilinos que se mudaram para lá eram pessoas que queriam viver com um conforto sensato e não se importavam com mais nada. Não discutiam o valor do prédio, simplesmente gostavam de morar lá. Eram o tipo de pessoas que levam vidas privadas, úteis, ativas e publicamente silenciosas.”

Por fim, Lembre-se que uma sociedade melhor é formada por indivíduos melhores.


Eduardo França

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.


Referências

Rand, Ayn. A virtude do egoísmo (Portuguese Edition). LVM Editora. Edição do Kindle.

Rand, Ayn. Capitalismo: O ideal desconhecido (Portuguese Edition). LVM Editora. Edição do Kindle.

Rand, Ayn. A nascente. Vide Editorial, 2019. Edição: 1º Edição.

360, Poder. Questão do Enem critica a “lógica do agronegócio” no Cerrado… Leia mais no texto original: (https://www.poder360.com.br/educacao/questao-do-enem-critica-logica-do-agronegocio-no-cerrado/) © 2023 Todos os direitos são reservados ao Poder360, conforme a Lei nº 9.610/98. A publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia são proibidas. Disponível em: https://www.poder360.com.br/educacao/questao-do-enem-critica-logica-do-agronegocio-no-cerrado/. Acesso em: 29 dez. 2023.

CHÉROLET, Brenda. Enem 2023: questões sobre agro podem ser anuladas? Entenda a polêmica. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/enem/enem-2023-questoes-sobre-agro-podem-ser-anuladas-entenda-a-polemica. Acesso em: 29 dez. 2023.

QUESTÃO 89 do ENEM 2023 era pra tanta polêmica com o Agronegócio? Parte 2 – Prof. Paulo Teles. Brasil, 2023. P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rCOS6a9Eo3U&t=10s. Acesso em: 29 dez. 2023.

TOSI, Marcos. Ao atacar o agro no Enem, governo Lula prega volta à “Idade da Pedra” Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/ao-atacar-o-agro-no-enem-governo-lula-prega-volta-a-idade-da-pedra/ Copyright © 2023, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados. 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/ao-atacar-o-agro-no-enem-governo-lula-prega-volta-a-idade-da-pedra/. Acesso em: 30 dez. 2023.

ANDRADE, Cristiana. Enem: Inep admite reforço e nova seleção de elaboradores das provas. Disponível em: https://www.otempo.com.br/enem-2023/enem-inep-admite-reforco-e-nova-selecao-de-elaboradores-das-provas-1.3273471. Acesso em: 30 dez. 2023.

Notas de Rodapé

  1. Conceito é uma integração mental de dois ou mais resultados concretos de percepção separados por um processo de abstração e unidos por meio de uma definição específica. (Pag. 30, A virtude do Egoísmo) ↩︎
  2. Lógica é a arte de identificação não contraditória. ↩︎
  3. Ética é uma ciência que busca definir quais os valores apropriados para o homem. ↩︎
  4. Moralidade é um código de valores que direciona a escolhas e ações do homem, escolhas e ações que definem o propósito e o rumo da sua vida. ↩︎
  5.  Filosofia é a disciplina que estuda a consciência (epistemologia), a realidade (metafísica) e a interação entre essas duas (ética, estética e política). ↩︎
  6. Amoralidade é a falta de adesão à princípios morais; o prelúdio à imoralidade.
    ↩︎
  7. “Antifrágil” é um termo cunhado pelo escritor Nassim Nicholas Taleb em seu livro “Antifrágil: Coisas que se Beneficiam com o Caos”. Refere-se a sistemas, organizações ou entidades que não apenas resistem a choques, estresses ou perturbações, mas na verdade se beneficiam e se fortalecem com esses desafios. ↩︎
  8.  Valor é aquilo pelo que alguém age para manter e/ou conseguir. ↩︎

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