Desde a demissão de Rafinha Bastos da TV Band, pergunta-se à exaustão qual o limite do humor. Hoje, porém, eu gostaria de argumentar que um humor sem limites é tão importante para uma sociedade livre quanto uma imprensa livre ou a liberdade de expressão. E não falo apenas de piadas inconvenientes, mas um humor que inclua até a mais sombria, nojenta, inconveniente e ofensiva das piadas.
A importância do humor pela literatura
Podemos entender melhor a situação através do romance “O nome da Rosa”, de Umberto Eco. Nele, há um conflito entre o protagonista Guilherme de Baskerville e o monge bibliotecário Jorge de Burgos em relação ao riso: Enquanto Guilherme via o riso como natural do ser humano, Jorge via no riso uma ameaça corrompedora. Isto porque, quando o camponês ri do diabo em vez de temê-lo, o diabo se torna um idiota, e, portanto, controlável. Mesmo que por alguns instantes, o riso invertia a hierarquia do mundo e libertava o camponês do medo do diabo. Disso, a liberdade para rir poderia levá-lo a afrontar a autoridade instituída e, talvez, o próprio Deus.
Este conflito proposto por Eco é bem descrito pelo filósofo Mikhail Bakhtin, o qual argumenta que humor carnavalesco subverte os papéis do mundo “normal” e quebra hierarquias, destituindo os grandes líderes de seus poderes e tornando-os tolos perante a população. Neste contexto, Jorge de Burgos representa o poder autoritário estabelecido, que coloca limite no humor por medo de perder o seu poder sobre a população.
Da literatura para a realidade
Em pequena escala, vimos isso acontecendo no Brasil com o grupo Porta dos Fundos, que se tornou conhecido no país por seus esquetes de humor extremamente debochados em relação ao cristianismo. O Porta lutou muito pela liberdade de publicar seus esquetes, a ponto de lutarem judicialmente para que seu especial de natal retratando um Jesus homossexual namorando o diabo pudesse ser exibido.
Entretanto, quando um de seus vídeos foi acusado de gordofobia pelo politicamente correto, ele foi rapidamente tirado do ar e regravado para não ofender mais ninguém. Isso porque, conforme a moral religiosa foi perdendo espaço no país, o grupo pôde difundir melhor os seus pontos de vista progressistas e se tornaram uma referência popular. Agora que são porta-vozes da nova moral progressista, não é interessante para o Porta que sua audiência aprenda a rir do progressismo. Eles se tornaram o novo Jorge de Burgos.
Onde há humor, há resistência
Vimos então que quem controla o limite do humor controla a moral de uma sociedade e, consequentemente, os poderes a serem respeitados e as ideias a serem perseguidas. Isto é bem sabido por líderes autoritários. Eles sabem que apenas ideias podem iluminar a escuridão, então fazem o possível para apagá-las: livros são queimados, intelectuais são fuzilados e dissidentes são mandados para campos de concentração, mas tornar uma piada proibida apenas a deixa mais forte, tornando-a até um sinal de esperança e resistência.
Podemos ver isso bem no livro “Foice o Martelo”, onde o autor Ben Lewis publicou as diversas piadas proibidas usadas pela população soviética da época para rir do regime ditatorial. Além delas, o livro também nos traz o interessantíssimo relato de Lev Razgon, que sobreviveu a 17 anos num Gulag durante o Grande Terror:
“Usávamos todos os meios para disfarçar o medo, para empurrá-lo para bem fundo. Nós brincávamos sobre isso, contávamos histórias engraçadas, e em nossas conversas particulares “eles” pareciam não apenas cruéis, mas também idiotas. ”
-(LEWIS, 2014, p. 97)
Mesmo Lev sofrendo no gulag, um lugar sem esperança onde a liberdade parecia ter sido totalmente apagada, a chama permaneceu viva no humor. Não apenas lá, mas também em todas as casas onde alguém ainda resiste. Nessas sociedades baseadas no medo do poder e na impotência do indivíduo, o humor é uma arma capaz de chegar em todas as classes sociais e ensiná-las de que seu grande líder não é invencível.
A vacina contra o autoritarismo
Mas e para nós numa sociedade livre? Qual seria a importância do humor se já temos acesso abundante às ideias de liberdade? Uma vacina. Para tomar o poder numa sociedade democrática, um candidato a ditador precisa de apoio popular. Ele precisa convencer a sua população de que está acima dos outros e é capaz de trazer a ordem e a prosperidade. Numa sociedade com humor livre, porém, todo aquele que tentar fazer isso acabará se tornando alvo de piadas e chacotas, tornando bem mais difícil que avanços autoritários aconteçam. Não por menos, quando tais pessoas surgem no debate, seus primeiros inimigos são aqueles que o ridicularizam.
O humor é, portanto, um fortíssimo aliado dos indivíduos, e que não deve ter limites para poder continuar lutando pela nossa liberdade. Ele é o primeiro a lutar e o último a morrer. Podemos até não gostar de algumas de suas piadas agora mas, quando todo resto é destruído, ele ainda estará lá por nós.
*As opiniões do autor não representam o Damas enquanto instituição