Joaquim Nabuco: Progressista ou Conservador?

Se você leitor do Damas me acompanha há algum tempo, saberá do meu apreço pelas décadas de 1870 e 1880. Já fiz textos sobre André Rebouças, Eufrásia Teixeira Leite, e sobre o movimento abolicionista ao redor da Princesa Isabel. Dentre esses, porém, Nabuco é com certeza o mais famoso, embora sua biografia tenha sido retomada tanto pelo movimento Livres, como um exemplo de liberal progressista, quanto por setores bolsonaristas, como um exemplo de conservador. Não tem como esses dois estarem certos ao mesmo tempo, tem? Qual deles seria então o verdadeiro Joaquim Nabuco? Terei como base sua autobiografia, “Minha Formação”.

Infância em Massangana

Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em 1849 no Recife, e passou uma boa parte da infância em Massangana, numa propriedade rural de sua madrinha. Foi lá que o jovem Nabuco teria um encontro fatídico. Estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa quando veio a ele um jovem negro desconhecido, com cerca de 18 anos, que o abraçou pelos pés e o suplicou para que fosse comprado como escravo pela madrinha. O jovem havia fugido do senhor que o maltratava, e estava desesperadamente em busca de outro. Foi neste encontro que Nabuco primeiro tomaria ciencia da instituição escravidão, com a qual batalharia tanto no futuro.

Nabuco permaneceu em Massangana até seus 8 anos, e partiu devido a morte de sua madrinha. Voltando para vê-la 12 anos depois, descobriu que a casa velha de suas lembranças não existia mais. O trabalho livre na região havia tomado o lugar do trabalho escravo, e os diversos empregados com os quais passou sua infância jaziam mortos e enterrados num cercadinho, sob montes de pedras escondidos pelas urtigas. Assim, aos 20 anos, essa segunda visita de Nabuco faria-o tomar consciência do problema moral da escravidão, o que se tornaria base moral para sua vida.  

Juventude Ativista

Nabuco era filho de um político de carreira liberal, José Tomás Nabuco de Araújo Filho, que não apenas migrou de conservador para liberal como também converteu vários de seu partido para o outro lado.

Com um pai assim, é natural que Joaquim Nabuco seguisse o caminho do pai e fosse um militante político. Ele se orgulhava de não ter em si um único pingo de tradicionalismo, mantendo-se liberal por completo e, em suas próprias palavras, radical. Já aos 15 anos ele escrevia críticas ao imperador e à Igreja Católica, participando ativamente da campanha maçônica de 1873 contra os bispos e a Igreja, embora tenha se tornado fã do Papa Leão XIII, o Papa liberal, quando este tomou posse. 

Aos 21 anos, era apenas um pouquinho monarquista e majoritariamente republicano. Via-se como revolucionário e acreditava que deveria existir um imperador, mas com o mínimo de poder e influência possível. Fica claro então como, na sua juventude, Nabuco foi o militante revolucionário PSOLista de sua época. Sua formação política, porém, ainda não estaria completa, e ele passaria ainda por algumas metamorfoses ao viajar pela Europa.

Embaixador em contato com o espírito inglês

Foram várias as viagens de Nabuco, que viria a ter a profissão de embaixador. No barco para a Europa, ele viria a conhecer Eufrásia Teixeira Leite, por quem se apaixonaria e manteria um relacionamento à distância por anos. Ele então viajaria para a Itália, onde se decepcionou com as artes, e para os Campos Elíseos da França, onde conheceria seus autores favoritos e mais tarde se decepcionaria com a literatura francesa. Por fim, foi na viagem para a Inglaterra onde seria contaminado pelo espírito inglês.

Nabuco se tornaria adepto da política do Partido Whig, o partido liberal inglês da época e partido de Edmund Burke. Ele passaria a ver o republicanismo e o presidencialismo como inferiores ao parlamentarismo, o qual chamava de governo de gabinete, e crente de que o caminho para o Brasil seria adaptar-se ao modelo parlamentarista inglês. 

“O fato é que, no republicanismo, falo do sincero, do verdadeiro, há um ideal, mas há também um ressentimento das posições alheias, como no socialismo, no comunismo, no anarquismo há ideal, mas há também inveja, e desta é que parte, quase sempre, o impulso revolucionário”.

Joaquim Nabuco, Minha Formação

Em viagem subsequente aos Estados Unidos, essa opinião só se confirmou. Apesar do muito respeito pelos americanos, Nabuco passou a ver, como Tocqueville, os efeitos de uma sociedade democrática sem as estruturas culturais da aristocracia, cujos partidos políticos cediam muito menos aos ideais comuns do que na Inglaterra. Já na época de Nabuco, havia conversas com o medo de que essas divergências trariam uma nova guerra civil.

A intervenção do grande pensador, do grande escritor, do homem competente, faz-se sentir na Inglaterra mais do que nos Estados Unidos, onde as massas obedecem a influências que não tem nada de intelectual e não tem apreço por nenhuma espécie de elaboração mental. (…) Na Inglaterra não há semelhante escravidão do Partido. O país é governado, como nos Estados Unidos, por dois partidos que se alternam e se equilibram, mas os partidos ingleses são partidos de opinião, não são machines, como os americanos, das quais um certo número de bosses governam e dirigem os movimentos”. – Joaquim Nabuco, Minha Formação

Joaquim Nabuco, Minha Formação

Nabuco teria então se solidificado politicamente como um liberal whig e adepto da monarquia constitucional. Mas não podemos deixar de lado a influência aristocrática: Nabuco teve contato com os maiores escritores franceses, participou de banquetes reais com o príncipe da Inglaterra e foi convidado pelo antigo speaker da câmara americana (o equivalente ao nosso presidente da câmara) a se sentar na cadeira durante uma sessão do congresso. Esta experiência diminuiu o seu radicalismo da juventude, converteu-o novamente ao catolicismo, e tornou-o um político bem mais moderado do que seus companheiros que permaneceram no Brasil.

Vale por fim lembrar que, em todas essas viagens, Nabuco constantemente denunciava os males da escravidão brasileira, visando aumentar a pressão internacional para que o Brasil adotasse a abolição.

Abolicionista Lendário

Apesar de querer continuar na diplomacia, a morte de seu pai em março de 1878 foi o que o lançou à política. Nos dez anos seguintes, de 1879 a 1889, seria a época em que Nabuco mais atuaria na política nacional, tanto como orador e autor, como também viajando por todo o país para garantir a disseminação de suas ideias. Foi membro da confederação abolicionista junto de André Rebouças, José do Patrocínio, e Luiz Gama. Em sua biografia, Nabuco divide este período em três momentos diferentes:

  • 1879–1883: Neste período, os abolicionistas combateram sós, entregues aos próprios recursos. Apesar de sempre terem havido pessoas a favor da abolição como os jesuítas, José Bonifácio, Castro Alves e Luis Gama. A liberdade ainda era um sonho impossível, e ser abolicionista nessa época era visto como arruaça. Tanto para o partido conservador quanto pelo liberal, aderir ou não ao federalismo era um assunto mais importante do que a abolição.
  • 1884–1887: A luta dos clubes abolicionistas e da resistência negra, e em especial o sucesso do livro “O Abolicionismo”, de Nabuco, converteu o Partido Liberal à causa abolicionista. Ser abolicionista ainda exigia sacrifícios, mas já havia uma massa de jovens, jornalistas, magistérios e padres trazendo o tema ao debate público e convencendo cada vez mais pessoas ao seu redor.
  • 1888: O partido conservador aderiu à causa abolicionista, que virou moda entre a população e a elite. A abolição havia ganhado tanto espaço que, como Nabuco relatou ao papa, havia sequestrado o debate político todo para si. Os próprios proprietários, que enfrentavam fugas em massa da resistência negra e alforrias em massa dos clubes abolicionistas, agora também libertavam seus escravos em massa por medo. A situação havia se tornado insustentável e a lei áurea inevitável.

Com o Brasil sob a regência da princesa Isabel em janeiro de 1888, Nabuco viu enfim uma oportunidade única e viajou para o Vaticano. O plano era simples, porém difícil: dado que Isabel era uma católica tão fervorosa, se Nabuco conseguisse um pronunciamento do Papa apelando para que ela aprovasse a abolição, Isabel com certeza o faria. Isso era algo que apenas ele, um embaixador de carreira e com contatos na aristocracia européia conseguiria fazer. 

Em sua longa conversa com o Papa Leão XIII, Nabuco conseguiu convencê-lo a escrever uma encíclica exclusiva para o Brasil em favor da abolição (In Plurimis). A encíclica saiu na mesma semana da Lei Aurea, mas foi reprimida pela ala conservadora por alguns dias, chegando ao Brasil somente depois de Isabel ter abolido a escravidão (foi por este motivo que  Leão XIII a presentearia com uma pena de ouro. Eu pessoalmente não consigo conter o sorriso quando leio o Papa dizendo na encíclica que falou com o embaixador brasileiro, que sabemos ser Nabuco, e que foi convencido por ele a escrever a encíclica pela libertação dos escravos).

Tendo seu dever cumprido, Nabuco teve um choque quando a monarquia caiu em 1889. Sendo um adepto das ideias de Hegel, porém, Nabuco se resignou de que isto era parte do rumo da história brasileira, e abandonou a vida política para voltar à diplomacia.

Mas e aí? Ele era exemplo de liberal ou de conservador?

Tendo lhe apresentado a biografia de Nabuco, caro leitor, posso lhe explicar que ambos os exemplos são válidos. Confuso? Pois bem. Acontece que os conservadores e liberais de hoje são muito diferentes dos da época dele. Edmund Burke, na época um liberal do partido tão admirado por Nabuco, hoje em dia é visto como o pai do nosso conservadorismo. 

Como era de fato a sociedade conservadora da época com quem Nabuco tanto batalhou? Isso podemos ver bem no livro “Nosso século”: As famílias conservadoras brasileiras eram clãs patriarcais, onde crianças e mulheres não passavam de seres insignificantes e amedrontados. Ao patriarca da família ninguém poderia questionar. Neste universo masculino, os filhos mais velhos também desfrutavam imensos privilégios, especialmente em relação aos seus irmãos. 

E os homens em geral dispunham de infinitas regalias, a começar pela dupla moral vigente, que os permitia aventuras com criadas e ex-escravas, desde que fosse guardada com certa discrição, enquanto que às mulheres tudo era proibido, desde que não se destinasse à procriação. Às mulheres, o livro detalha bem a rotina:

“Às sete horas da manhã a família toma o seu desjejum: café com leite, bolos e biscoitos, servidos por uma copeira branca. É elegante ostentar brancas, de preferência louras, no serviço de casa. (…) Até o almoço, às 10 horas, a dona de casa dispõe de tempo suficiente para folhear figurinos de moda. Recebe em casa a costureira e, já tendo delegado à governanta a fiscalização da limpeza e arrumação (…) pode dedicar-se a bordar monogramas na roupa branca da casa ou a ler algum romance francês.

Depois do almoço, receberá para o chá das 13 horas as damas da sociedade, que fazem tricô e crochê para a quermesse da igreja.

Após o jantar, às 17 horas, a fatigada anfitriã repousa. À noite receberá a visita de alguns parentes. Entre um assunto e outro, haverá quem toque piano, cante, ou declame poemas”

– Nosso Século

Divisões assim são comuns em grandes personalidades do passado, como no caso de André Rebouças, que é simultaneamente o nosso primeiro empresário libertário e o criador do tema da reforma agrária no Brasil. No caso de Nabuco, é uma diferença de meta e método:

  • A meta utópica de Nabuco era o liberalismo com estado mínimo e indivíduo máximo, com um desejo burkeano de manter as estruturas do estado brasileiro na monarquia constitucional, igualdade de direitos, império da Lei, e uma afinidade por Tocqueville na crítica às democracias republicanas.
  • O método de Nabuco, seus argumentos progressistas para defender o liberalismo e a abolição, são os mesmos utilizados pela nossa esquerda progressista mesmo depois de ela ter descartado o liberalismo. Vemos isso bem na esquerda carioca fortemente PSOLista, descendentes da elite abolicionista do passado. 

Um legado para todos nós

O legado de Joaquim Nabuco não cabe apenas a um grupo. Ele foi um grande homem cujas ações ainda reverberam nos diferentes grupos políticos de nosso país: 

  • Aos conservadores, ele é um Edmund Burke tupiniquim que serve de exemplo para a defesa das estruturas e combate a radicalismos revolucionários.
  • Aos liberal conservadores e libertários, ele é um Frederic Bastiat tupiniquim, defensor das liberdades individuais, do homeschooling, e feroz oponente do corrupto e burocrático Estado Brasileiro.
  • Aos liberal sociais e aos progressistas, ele é o antepassado de José Guilherme Merquior ou de Guilherme Boulos, num contínuo processo histórico progressista, sendo ele que imitam quando tantas vezes denunciam o Brasil no exterior.

Não existe um dedo sequer de nossa política que não tenha sido tocada por seu legado. Mais do que apenas entrar para a história do país, Nabuco tornou-se um dos pais fundadores de toda a política brasileira.


1 comentário em “Joaquim Nabuco: Progressista ou Conservador?”

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