Leia livros de ficção, não teóricos: A educação do imaginário é mais importante do que você pensa

“lendo a grande literatura, torno-me mil homens e ainda permaneço eu mesmo. Como o céu noturno no poema grego, vejo com uma miríade de olhos, mas ainda assim sou eu quem vê. Aqui, tal como no ato religioso, no amor, na ação moral e no conhecimento, transcendo a mim mesmo. E nunca sou mais eu mesmo do que ao fazê-lo.”

– CS Lewis

Pouquíssimas frases seriam tão contundentes quanto essa apresentada acima, do ilustríssimo escritor inglês C.S Lewis, ainda mais porque passando entre artigos e outros autores será inevitável retornar à ela umas duas ou três vezes, ou no caso, à seu sentido geral, como poderá o próprio leitor verificar, num segundo olhar. Isto porque a mesma engloba de inúmeras formas os átomos, por assim dizer, de um sentido geral que quero elucidar discursivamente a respeito da literatura. Ou estaria eu mesmo bebendo do sentido geral e trazendo depois em pedaços, no discurso, o que foi colocado por ele de forma condensada? Ironicamente, as coisas se misturam, tal como na magia da literatura, esta que constrói caminhos por dentro da nossa imaginação e nos deixa diferentes de antes sem matar a individualidade, que nos leva à epifanias e terrores, e que é o tema de hoje.

Muito se fala em tempos atuais a respeito da importância da literatura à nível neuronal ou de saúde psicológica e prevenção de doenças no cérebro, como mostram estudos. Entretanto, há ainda uma outra dimensão que também é contemplada, mesmo que brevemente, até nas abordagens mais científicas, mas esquecida ou deixada de lado (de muitos modos) por parte dos leitores de artigos e periódicos de natureza informativa: a dimensão da construção do imaginário literário individual. Não que não se ouça falar da importância das histórias para a imaginação, mas porque se possa pensar, num erro crasso, que a imaginação se encerra nela mesma, ou que a literatura nada diz senão sobre si mesma. Note que aqui não quero fazer nenhuma oposição ao que defende Lewis quando diz que o exercício literário deva ser um “fim em si mesmo”, mas adicionar a isso o fato de que desta maneira, as formas literárias trazem em si um pouco de tudo, como evidencia o próprio Lewis:

“ A boa leitura, portanto, embora não seja uma atividade essencialmente afetiva, moral ou intelectual, têm algo em comum com os três aspectos. No amor, escapamos de nosso ser para entrar em outro. Na esfera moral, todo ato de justiça ou caridade implica colocarmo-nos no lugar da outra pessoa e, assim, transcender nossa própria particularidade competitiva. Ao alcançarmos a compreensão de qualquer coisa, rejeitamos os fatos tal como eles são para nós em favor dos fatos como eles são. O impulso primário de cada um é de se firmar e se engrandecer. O impulso secundário é sair do ego para corrigir seu provincianismo e curar sua solidão. No amor, na virtude, na busca do conhecimento e na recepção das artes, sempre estamos fazendo isso. Obviamente esse processo pode ser descrito tanto como uma expansão quanto como uma aniquilação temporária do ser. Mas isso é um velho paradoxo; “aquele que perder sua vida vai salvá-la”.  

Então, se a atividade literária pode vir a ser tão rica e tão apaixonante, resta-nos antes fazer uma breve investigação a respeito do que foi que a fez ser encarada como uma atividade tão mecânica ou monótona aos olhos de muitos, porque, garanto ao leitor, saber isso nos fará aproveitar seu potencial e aprender com ele, não cometendo certos erros. Não que a mesma já não seja um hobbie seleto desde sempre, mas porque cada vez mais o ato de ler está difuso, e uma vez cientes disso, entender porque aquilo que antes aparecia de forma mais comumente atrativa à determinadas pessoas têm ficado tão em segundo plano.

A literatura ficando de escanteio:

Sobre este ponto específico, bem como sobre diversos outros pontos concernentes à magia e às problemáticas do mundo literário, o Búlgaro Tzvetan Todorov tem bastante a contribuir. Seu livro de título contundente, “A literatura em perigo” traz sintetizadas várias das causas do escamoteamento desta forma de arte, dentre elas,  a forma robótica com que o ensino de literatura é feito, discorrendo muito mais sobre a forma, o estilo, a linguagem e pormenores do contexto histórico do que o conteúdo, que segundo o autor, seria um ponto de interesse “geral” por tratar das questões humanas mais profundas. O resultado é mostrado de forma categórica pelo próprio autor:

“Sem qualquer surpresa, os alunos do ensino médio aprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem relação com o restante do mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra entre si. O que, não se duvida, contribui para o desinteresse crescente que esses alunos demonstram pela filière littéraire em poucas décadas, o número passou de 33% para dos 10% inscritos no bac geral”

Não sendo esta, é claro, a única razão pela qual tal situação de desinteresse ocorre, peço que o leitor faça agora um exercício mental: Imagine que está prestes a conversar com uma pessoa “comum” sobre as razões pelas quais gosta de um esporte ou mesmo uma forma de arte específica. Dúvido que o foco da conversa, no primeiro caso, se centrará muito em tecnicalidades como as regras, a história ou o preparo físico concernente àquele esporte, mas muito mais sob a experiência intra e interpessoal que se desenrola. As relações construídas, o arcabouço de experiências obtidas no processo e o impacto que isso têm dentro de uma pessoa, no segundo caso, centrando-se muito mais sob a experiência emocional e de experimentação de uma nova ótica da realidade do que tecnicalidades como a linguagem, o movimento artístico em termos temporais ou se tal obra atende a este ou aquele requisito de uma escola literária. 

É algo mais próximo a este tipo de análise que Todorov se inclina, não no sentido de deixar de lado o entendimento de determinadas técnicas e seus usos, mas para articular estes entendimentos na sintetização do sentido da obra, que segundo este deve ser o principal interesse, principalmente na formação básica (aqui tida como o ensino médio). Para Todorov, sem isso, qualquer estudo em cima do tema não pode ser tido como estudo literário, mas como estudo de produção literária, ou seja, os meios pelos quais se faz, não o objeto. Analogamente, acredito que quaisquer dos que me lêem agora, se ao invés de iniciar uma conversa sobre o quanto o filme V de vingança consegue ser instigante ainda hoje, tentasse trazer em peso os fatores produção como parte do assunto, certamente poria todos seus amigos ou colegas para dormir instantaneamente de tédio, a não ser que se tratasse de uma roda de cinéfilos assíduos.

Segundo Todorov, porém, a problemática vai mais a fundo: Ao carregar essa visão maçante de uma acadêmia que se desconectou da valorosidade de absorver a experiência de um texto, o desinteresse é o menos pior dos males. A reprodução comportamental, no entanto, é muito pior. Aqueles que não se desvinculam totalmente da academia literária e não chegam a questionar tal abordagem se tornarão professores que reproduzirão os jargões criticistas que andam longe de permitir a experimentação de qualquer forma de êxtase dentro de um texto literário, sobrando a este servir como uma forma de busca de status ou de viés de confirmação de alguma ideia possuída por quem leu, enquanto o verdadeiro potencial das obras fica de escanteio esperando para ser descoberto por leitores por vezes amadores, mas diversas vezes mais sinceros. 

Sendo inesgotáveis a quantidade de fatores que podem influenciar para menos ou mais no interesse da leitura, fica claro que, enquanto outras formas de arte têm se adaptado para chegar a mais e mais público (aqui não fazendo juízo de valor de tais obras) têm restado à literatura um caminho ou demasiado acadêmico e redundante, ou independente, mas sempre estigmatizado e mal interpretado (ironicamente), tudo graças à um péssimo “ensino literário” que para muitos será o único contato com literatura, numa jornada tão animadora quanto dar pães a pombos. 

Talvez fosse nesse caminho que pretendia ir Fernando Pessoa quando disse que “A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo”. Contudo, não há fórmula mágica, o próprio Todorov sugere em mais de uma passagem que uma reformulação institucional é urgente (analisando o caso da frança, onde a situação é mais grave) mas não esconde que a mudança de paradigma mais possível e mais valorosa é antes de tudo a da esfera individual. Neste sentido, Todorov e Lewis parecem concordar que não é apenas importante o que se lê, mas em várias camadas como tal coisa é feita, tópico ao qual Lewis consegue devotar bastante de sua capacidade poética e que nos dá um gancho para o próximo tópico.

A entrega à literatura:

 “A primeira leitura de uma obra literária para os literatos é, com frequência, uma experiência tão importante e significativa que apenas experiências como o amor, a religião ou o luto podem servir como parâmetro de comparação. Toda a sua consciência é alterada. Eles se transformam no que não eram antes. Mas não há nem indício de algo assim entre os outros tipos de leitores, que quando terminam um conto ou um romance, nada de muito especial ou nada – simplesmente – parece ter acontecido a eles.”

Aqui, sob a alcunha de literatos, Lewis estabelece uma classe de leitores que lê numa profundidade tal que os permite trazer para si um fator de mudança através da literatura. Aliás muitos artigos têm apontado que só o que chamam de “leitura profunda” (que é uma leitura de atenção total) pode causar conexões cerebrais mais poderosas e a produção de um imagético mais rico naquele que lê, e isto combinado com a literatura é o que fortalece a imaginação, a inventividade, a capacidade de expressar ideias e emoções com contundência, etc. Ainda, outros periódicos têm caminhado na ideia de que a concentração profunda é, em si mesma, uma espécie de hipnose possibilitadora de fantasias vívidas e uma maior sugestionabilidade (neste contexto, vista como a habilidade de entregar-se a um processo, no caso a leitura). 

Mesmo com eventuais diferenças, é possível perceber a transformação fundamental que faz e fará a “entrega” na leitura para quem a utilizar, pois diferentemente de uma leitura rápida, esta te coloca “na pele” dos personagens, vivendo as situações sob os olhos deles e tendo de enfrentar situações junto com eles, sendo necessária apenas a anuência sincera do leitor. Em certa medida, todas essas experiências construirão um arcabouço de vivências do imaginário que, mesmo tão abstratas para enunciar em detalhe, manifestam-se na vida de um indivíduo de maneira gritante. Agora, ao passo que esse indivíduo ainda é ele mesmo, possui dentro de sí pedaços dos escritores e seus personagens, condensados numa massa etérea que permite ao leitor entender mais destes, mas ao entendê-los, percebe que isto dizia algo (ou talvez muito mais) sobre ele mesmo, no fim das contas.

A empatia com o outro rumo a entendermos nós mesmos:

“O homem que se contenta em ser apenas ele mesmo e, portanto, ser menos, vive numa prisão. Meus próprios olhos não são suficientes para mim, verei por meio dos olhos de outros. A realidade, mesmo vista por meio dos olhos de muitos, não é suficiente. Verei o que outros inventaram. Até mesmo os olhos de toda a humanidade não são o bastante. Lamento que os animais não possam escrever livros. Ficaria contente em saber que face têm as coisas para os olhos de um rato ou de urna abelha. Ainda mais contente ficaria em perceber o mundo olfativo, impregnado com todas as informações e emoções que contém para um cão.”

– CS. Lewis

Caso o que vou dizer já não tenha sido inferido pelo leitor, permita-me explicar, porque se para bom entendedor meia palavra basta, uma palavra inteira clarifica as coisas: A leitura é um excelente motor de produção de empatia e intra-pessoalidade, porque, em certa medida, na literatura, ambas têm um lugar comum e se entrelaçam quase como sinônimos. Todorov, em seu livro, constantemente usa a palavra “universal” e similares para adjetivar o tipo de processo no qual somos inseridos, que nos permite experienciar as “nuances” de alguém que, a priori, sempre carregará consigo os dilemas que são identificáveis e compartilhados na vivência humana (uma vez inserido nesta), por mais que saber ou colocá-los de fato ou não numa obra, seja uma jornada à parte. 

Na perspectiva do público, resta oferecer sua confiança ao artista para ser guiado pelo resultado desta jornada. Entretanto,  independentemente dos resultados desta ou daquela obra, o próprio exercício de empatizar com autores e obras nos fará amadurecer para nossas relações pessoais quando a realidade a nossa volta for o “livro” da vez, porque mesmo se assumirmos que essa não é a razão primeira da literatura, é inegável que ela brilhantemente cumpre esse papel diante de todo aquele que desacredite esta visão de que a literatura e a realidade são mundos dissociados. 

Não poderiam, pois que se retroalimentam, e triste seria se fossem dissociados, pois que em nada tocariam a outra dimensão. Porém, se vê que não é assim quando o leitor se inspira e muda algo em si através da obra, e quando o artista capta algo da realidade e transmuta para sua ficção. Só no entendimento dessa interseção é que qualquer reciprocidade empático-literária pode nascer, e até efeitos mais práticos podem ser vistos na vida diária.

É valioso citar também que, dentro das noções citadas acima, um subconjunto de mudanças e aperfeiçoamentos se entrelaça em específico no âmbito da linguagem. Ora, seria impossível tratar de empatia sem dizer que é fundamental uma versatilidade linguística que a leitura informacional pode até oferecer, mas jamais na dimensão dos escritos literários, isto porque é neles que as diversas linguagens podem e são moldadas para representar as diversas facetas de personagens, narradores e eu-líricos. 

Alguém que sabe adaptar sua linguagem ao contexto e ao interlocutor não só se faz entender como têm ferramentas para transpor quaisquer barreiras de vivência ou ideológicas, por exemplo. A literatura informacional também nos habilita a um sentido de ampliação linguística, entretanto, como esta é mais objetiva, oferece menos facetas nas quais podemos nos apoiar para construir textos e oratória de identidade profunda, por exemplo. Quem lê somente os periódicos e os materiais teóricos, corre o risco de ficar preso a um universo de vocabulário e interpretação engessados, puramente articulados no jargão de determinadas literaturas informantes. A maleabilidade e articulação do imaginário, quer na comunicação ou em sentidos introspectivos, passa obrigatoriamente pelo enriquecimento do universo simbólico, cuja literatura é um fortíssimo vetor.

A articulação do imaginário na vida e nas ideias:

Da base construída até então se inferem todas as coisas que direi, porque não é absurdo inferir que, particularmente, o indivíduo possuinte de um rico imaginário e que experienciou uma gama de vivências líricas é justamente aquele que pode entender e se fazer entender da melhor maneira possível, nem só num âmbito racional, mas de conexões emocionais mais profundas. Ainda que se aponte sob este indivíduo a existência de alguma introversão, ele é possivelmente alguém de uma capacidade de compreensão alheia considerável, o que tem potencialidades a oferecê-lo assistência nas mais diversas áreas, como a acadêmica, e profissional, e até no âmbito pessoal, isto é claro, pressupondo que este mesmo indivíduo tenha se permitido associar os âmbitos do que é lírico e da vivência singular. Transpostas as barreiras comuns a todo ser humano, o literato (como chama Lewis) “Torna-se o que não era antes”, transmutando uma mudança que não o descaracteriza, mas potencializa sua personalidade. Dá-lhe ferramentas para ser mais empático, comunicativo, articulado (através da associação do universo simbólico e do real) e, sobretudo, mais humano.

Quer seja apresentando um projeto, explicando um ponto de vista, uma ideia, ou mesmo sendo franco com alguém querido sobre um assunto sensível, o senso de humanidade é o que nos guiará no processo, humanidade essa que dentre tantos exercícios necessita de “ver pelos olhos dos outros” na literatura e beber dela. 

Somente quando fortalecido esse elemento humano é que conseguimos nos colocar ao mundo numa visão fidedigna do que somos internamente. A representação bem sucedida, quer escrita, mental, ou oral das ideias, emoções, aspirações e personalidade geral, nada mais é que a consolidação e o retrato de uma mente articulada, nutrida dentre outras vias, pela literatura enquanto poderoso vetor simbólico. Mas não se enganem, só na entrega verdadeira à leitura como um fim é que essas coisas irão nascer, não como resultado óbvio dado a quem faz algo, mas como fruto deste fim que nasce a seu próprio tempo e condições. Em última análise, a literatura ainda é, e sempre será, o canto na alma do aflito, a dúvida na alma do convencido, o caos na alma do ordeiro e a ordem resguardada no caótico, sem bastar-se em nada disto. No fim, a teremos como um rastro da experiência humana que nos carrega num processo interminável e transforma em outro indivíduo todo aquele que, paradoxalmente, nunca pediu nada a ela senão ter a sorte de se deparar com obras genuínas, de novo e de novo.


Referências

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. [S. l.: s. n.], 2007. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4423352/mod_resource/content/1/Todorov_A%2Bliteratura%2Bem%2Bperigo.pdf. Acesso em: 20 out. 2022.

LEWIS, Clive Staples. Um experimento na crítica literária. [S. l.: s. n.], 2009. Disponível em: https://pdfcoffee.com/c-s-lewis-um-experimento-na-critica-literariapdf-pdf-free.html. Acesso em: 20 out. 2022.

BBC (London, United Kingdom). O que é a leitura profunda e por que ela faz bem para o cérebro. BBC News Brasil, [S. l.], p. 1-1, 1 nov. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59121175. Acesso em: 20 out. 2022.

BBC (London, United Kingdom). Hábitos digitais estão ‘atrofiando’ nossa habilidade de leitura e compreensão?. BBC News Brasil, [S. l.], p. 1-1, 25 abr. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-47981858. Acesso em: 20 out. 2022.

CHERRY, Kendra. What is hypnosis. Verywell Mind, [s. l.], 26 set. 2022. Disponível em: https://www.verywellmind.com/what-is-hypnosis-2795921. Acesso em: 20 out. 2022.


*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição

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